Tentei organizar a minha agenda entre morte e morte.
Bebi o café depois da morte do direito ao descanso e antes da morte do direito ao salário justo. E sentei-me a trabalhar entre a morte do direito à não escravatura e a morte da ciência que se questiona.
Questionei, depois. Já não era tempo de questionar. O vento, as pessoas em redor, o pivô do jornal que passava na TV, todos me mandaram sonoramente calar. Reduzi-me à minha insignificância, entre a morte da liberdade de pensamento e a morte da presunção da inocência.
Dei os dados solicitados às entidades competentes entre a morte da privacidade e a morte da igualdade perante a lei. Procurei um julgamento justo. Mas informaram-me que esse tinha falecido precocemente e já há vários séculos. Chorei-lhe a morte, porque não sabia.
Pediram-me que ficasse em casa, aguardando o veredito certo da culpa. Fiz as tarefas mundanas entre o noticiário das oito e a apresentação do orçamento de Estado. E logo morria a cultura. Zero vírgula vinte cinco vezes, desta vez.
Saí, contra a indicação, para informar os outros de que o sol se estava a apagar. Mas as pessoas eram sombra. Colei o alvo nas costas, entre a morte da empatia e a morte do pensamento.
Vieram buscar-me entre as dez e as onze. Perguntei quem tinha morrido antes e depois, mas não me disseram. Afirmaram que deveria calar-me, entre as onze e a morte da liberdade de expressão.
As balas lá andavam. Soltas na rua. E havia o alvo nas minhas costas.
Um sussurro esvaiu-se em sangue sobre o opaco de mentes cegas.
Caí. O fim da minha agenda, na agenda dos outros. Entre morte e morte. Ao lado do meu corpo, inerte e trespassado, outros rastejavam.
Balas perdidas no ar não matam quem anda de rojo. Pensei. Mas que triste forma de viver.
Magnífica conjugação de vários assuntos com a morte como base. E às vezes vivos estamos mortos e é preciso acordar. Parabéns!
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