terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Voodoo

 


A agulha é a espada dos novos ditadores. Fabuloso. Com ela, injetam euros nas próprias contas, substâncias nos crentes e miséria nas sociedades. A agulha é a arma do momento. O boneco de voodoo somos nós.

 

 

Usaram a lã de carneiro para encher o bonequinho. No seu esqueleto, a cruz católica, que ainda se honra sem regra nem diploma, formando os bracinhos abertos à espera que caiam soluções do céu. Colocaram o tecido de máscara, forrado de falta de empatia, para o fechar e aconchegar no seu requinte de perfeição. E uma primeira agulha para coser cuidadosamente as bainhas. E uma segunda para desenhar olhinhos cruzados nas órbitas. E uma terceira... para nos proteger. E dizem que tem a intenção do que nele se verte. Mas... quem verte o quê?

 

Das intenções, não sei. Mas deitaram sal nas portas dos restaurantes, dos ginásios e das discotecas. Não vá entrar o demónio, pelas mãos de quem não tem o seu próprio amuleto. E lá vemos os incautos favoritos, a agitar o seu bonequinho de voodoo à porta. Orgulhosamente. Parte da solução de todos os problemas menores. Os Protegidos. Os Protetores. Os Promotores da Ordem. Mil elogios em horário nobre. Seja!

 

Eu estou cansada de brincar com bonecas. Aliás, eu nunca fui muito fã de bonecos. Estava entretida. Mesmo na infância. Com os livros. A perceber como, em tempos, outros discursos (ou os mesmos), moviam outras massas (ou as mesmas), levando-os a outros separatismos (ou aos mesmos) e criando outras manchas negras no mundo (ou as mesmas). Diziam-me que os livros abriam os horizontes, mas frequentemente me ordenaram que os largasse e fosse brincar. Teriam medo de horizontes abertos?

 

Acho que tinham. Medo. Porque horizontes abertos criam ideias. Ideias criam pensamento crítico. Pensamento crítico cria desobediência. Desobediência cria mudança. E é o status quo lhes alimenta as contas e os egos.

 

Vai! Vai brincar com bonecas!

 

As contas esvaziam-se. Os espetáculos cancelam-se. As doenças matam por falta de acompanhamento. Cirurgias cruciais que nunca são feitas viram autópsias precoces.

 

Vai! Vai brincar com bonecas!

 

O problema é que dizem que o problema é outro. Que a solução é outra. Quando a solução não funciona, o problema é de quem não confia na solução. O problema é quem não confia na solução.

 

Vai! Vai brincar com bonecas!

 

Mas não te apoquentes. Porque não és assim tão melhor. Chegas. Do nada. Uma espécie de fonema incerto. Lançado dos confins. Para defender o mesmo, de outra maneira. Olha: ainda sobrevives! Fico feliz. Sorrio. Sorrio de verdade. Até sentir. No peito. Lá. Onde dói mais. Mesmo em cima da ferida que não sara. O rasgar de novas emoções. Penso por segundos que a humidade é sangue. A humidade é lágrima, caindo. Sobre o decote aberto e a ferida de Pedra.

 

Vão espetando – todos - a agulha. Essa arma. Ela entra mais fundo, para libertar mais um bocadinho da saudade líquida que me fica de passados livres – hoje com mais mutações do que os vírus. São doses e doses dessa saudade. Para eu ir morrendo, mas a respirar...

 

A agulha é a espada dos novos ditadores. Fabuloso. Com ela, injetam euros nas próprias contas, substâncias nos crentes e miséria nas sociedades. A agulha é a arma do momento. O boneco de voodoo somos nós.

 

Ouço: Vai! Vai brincar com bonecas!

 

Perdoem-me! Já tenho o peito dilacerado. Talvez tenham sido os livros. Talvez tenham sido as espadas. Talvez tenhas sido tu. Talvez seja tudo junto. Nunca tive uma cruz no esqueleto, nem jeito para a costura e os lavores. Dispenso as espadas modernas. Fico-me pela palavra. Chamem-me louca! É a única arma que sei desembainhar e brandir. Chamem-me pária! Pena é que tantos, tenham escolhido (e escolham ainda) os bonecos em vez dos livros...

 

Trago o peito rasgado. Página do livro que aparentemente ninguém leu. Mas, por favor, deixem-me ir com ele assim, aberto. Não preciso de agulha que mo remende.

 

 

A agulha é a espada dos novos ditadores.

 

E, se o boneco de voodoo somos nós... eu não brinco mais!


 Marina Ferraz





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