terça-feira, 18 de junho de 2024

Se eu estiver certa

 


Em memória de 
Maria Graciosa Cunha de Almeida Ramiro Júlio Matias

Se eu estiver certa, vou ter saudades das saudades. É isto que eu sei. Quando abri os olhos, foi o meu primeiro pensamento. Um pensamento solto. Livre. Ondeou em meu redor e pousou no meu ombro. Disse-me “bom dia”. E eu percebi como sou feliz. Com a saudade.

 

 

 

Todos os dias penso em ti, avó.

Todos os dias penso em ti, avô.

Todos os dias penso em quem, por sobre a terra caminhando, largou o apego ao corpo, que se fez terra também, para voar livre para paragens desconhecidas.

 

Todos os dias penso em ti, avó.

Todos os dias penso em ti, avô.

E todos os dias eu vivo com um toquezinho muito ténue de alento, que vem justamente da falta, porque a não vejo como falta, mas como uma presença-presente até ao limite do que o verbo estar comporta.

 

Quando penso – saudosamente - em vocês, que não estão, penso nessa presença permanente que as muitas presenças deixaram. Penso no quanto é preciso que a presença importe, marque, prevaleça, para que sintamos saudades de alguém.

 

Sou um ser de solitude. Talvez porque preciso de silêncio e paz para vos ouvir nesse sussurro muito sussurrado, a darem-me as respostas que o mundo não cede. Ou cede. Mas com ruído e violência e desamor. Com guerra e servidão. Não. Não quero aprender com o mundo. Quero aprender nesses pequenos vazios cheios-de-vós, cheios-de-voz, cheios-de-avós, nos quais eu sinto que me é dado, de bandeja, um conhecimento puro e leve, capaz de entranhar no tutano do osso vergado que abraça o coração. Um conhecimento que é amor e não amargor. Leve. Desapegado.

 

Cada dia que passa. Cada mês. Cada ano. Passos. Passos para chegar à plenitude. Ao reencontro?

 

Todos os dias penso em ti, avó.

Todos os dias penso em ti, avô.

Dizem-me que pensar-vos é trazer mágoa à vida. Mas quem o diz não sabe nada sobre a vocês. Ou sobre a mágoa. Ou sobre a vida. Sabe só que é mais fácil encher os dias de muitos nadas, que cubram e enterrem os sentidos, para que o cansaço ganhe e a alma feche os olhos.

 

Não acho que gostasse de vos falar do mundo, hoje. E vocês sabem como eu sou. Como gosto de acusar os autores pestilentos e péssimos destas narrativas de miséria e conflito, onde o único mandamento que prevalece é “ide e fazei fortuna à conta da desgraça alheia”. Mas não. Hoje não. Quando abri os olhos, tive um meu primeiro pensamento. Um pensamento solto. Livre. Se eu estiver certa, vou ter saudades das saudades.

 

Então, hoje, em vez de vos falar do mundo, vou falar ao mundo sobre vocês. Não vou contar pormenores, nem detalhes. Não me vou demorar na forma como se arrastavam horas em histórias pequeninas e jogos de palavras e dedos-meninos. Não me vou demorar no som do dominó a bater na mesa, ou no cigarro apagado no cinzeiro, que era prólogo do acender de um outro. Não me vou demorar a dizer como olhos eram cascata virgem na vibração orgulhosa do meu nome. Não me vou demorar no conselho tatuado na minha pele, dito de voz idónea e escrito por mão tremente. Vou falar ao mundo sobre vocês, dizendo simplesmente que, se eu estiver certa, vou ter saudades das saudades.

 

E isso terá de bastar.

 

Porque todos os dias penso em ti, avó.

Porque todos os dias penso em ti, avô.

 

E acredito, do fundo desse coração abraçado por ossos que beberam da vossa presença, que isso me deu uma vida que valeu a pena. Quer eu esteja certa. Ou não.

 

 Marina Ferraz


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