terça-feira, 16 de agosto de 2022

Nos livros antigos

 



“Acreditas no Amor?” – uma pergunta inocente. Sorri.

 

 

Tenho culpado o século XXI. O digital. A dinâmica crescente da solidão em grupo. A fugacidade – tão diferente da efemeridade – quando se trata de sentir... Faz-me sentir desolada. Podia desistir. Mas agarro um livro.

 

 

Ela falava na terceira pessoa. Pedia a bênção antes de sair de casa. Cobria o decote e adotava uma postura de recato. Algures, os pais ensinaram-na a tratar da casa e dos lavores. Repreendiam-na se estava à janela ou se desafiava um dos irmãos. Um dia, diziam-lhe, depois de tirar o curso do magistério, teria talvez a sorte do namoro na presença dos pais. O toque era proibido, mas viria com as núpcias. E seria uma esposa capaz. Uma professora primária, título de honra para a raça… ou simplesmente dona de casa, se o marido assim preferisse.

 

Ela sonhava o amor. Sofria por amor. Um amor negado pelos tempos. A vida era algo insípida. Pegava nos livros antigos. Procurava, entre as folhas, sal e pimenta.

 

Eram livros de outros tempos. Falando das festas nas casas senhoriais. Neles, outras moças, com os vestidos da moda, debutavam de branco, dançando com os solteiros, valsas coreografadas com requinte. Uma orquestra tocava, exímia, e todos olhavam, com curiosidade, tentando destrinçar quem pediria a mão de quem naquela temporada de romance.

 

Essas meninas, as dos livros que ela lia, também sonhavam o amor. Também sofriam por amor. Um amor frequentemente negado pelo tempo ou estatuto social.

 

E também elas se refugiavam. Nos livros antigos. Procurando uma história de amor melhor. Possível.

 

Liam sobre o tempo medieval. Sobre as moças da corte e como os seus corações seguiam rumos pré-feitos, longe de perfeitos. Sobre como a paixão, por vezes, nascia fora da linha do destino, ditatorialmente escrita pelas famílias. Também essas sonhavam o amor. Também essas sofriam por amor. Também essas se refugiavam nos livros.

 

As moças dos livros medievais que as debutantes liam, assim como o livro sobre as debutantes que a minha avó lia, assim como o livro que eu leio sobre alguém que, não sendo a minha avó, me recorda dela, naqueles anos 50... há um sentimento comum para todas nós, sejamos reais ou produto da imaginação de alguém.

 

O sonho do amor. A mágoa.

 

São coisas do século XXI. Acharmos que é tudo coisa do século XXI. Culpamos o digital. A dinâmica crescente da solidão em grupo. A fugacidade... mas dos espartilhos aos chapéus, aos vestidos de chita e às Adidas Superstar; por entre os frescos das paredes, que deram lugar às peles de urso, aos quadros realistas e aos posters de cinema... a diferença mora no que é mundano. O sentimento não muda. O sentimento é o mesmo.

 

Trago em mim todas as moças de todas as histórias que li e as de todas as histórias que elas leram. Pergunto-me. Quem me lerá um dia, fazendo-me a mais recente personagem velha das estórias? Quem lerá, de coração moído, encontrando nos livros antigos o conforto que falte então?

 

Perdoo o século e suavizo a mágoa, lendo.

 

Já que a ferida é permanente e rasga a alma, espero que não deixem de imprimir livros novos. Que serão antigos... um dia. E curarão... se não a dor... pelo menos a solidão.

 

“Acreditas no Amor?” – uma pergunta inocente. Sorri. Sorri e quedei-me em questões.

 

              e se eu for a personagem de um livro qualquer?

              e se eu não existir?

              e, se não existo, porque sinto desta forma, tão completa e louca?

 

Nos livros antigos, concluo, está a resposta final. A base do Universo é o Amor.

Talvez, sadicamente, ele seja autor de todos os livros que lemos. E, se o é, o Amor é a coisa mais concreta de todas...

 

Se acredito no Amor?

Acredito!

Plenamente!

 

Mas começo a desconfiar que tudo o resto seja ficção.


 Marina Ferraz





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