terça-feira, 11 de maio de 2021

Exorcismo


Fotografia: Miguel Pião

Chamem alguém que perceba dessa coisa que é Deus. Peçam-lhe que me exorcize os demónios. Estou farta de escalar paredes. O chão está em chamas. Sorrio.

 

 

Não sou eu que olho a janela. Quem a olha, hoje, são os demónios. Esses que me povoam a história e a vida, como se história e vida fossem parcelas de uma mesma coisa, toda feita de costumes e eternidades.

 

Os demónios gostam mais das noites escuras e preferem que durma. Desgastam-se nas horas de assombro, em que os acordo e irrito, sujeitando-os ao universo constante, linear e todo cheio de concretos que é o amor.

 

O chão arde e os meus pés descalços palmilham lentamente as lajes. Passo a passo, numa dança constante de segundos e décadas e séculos e milénios de uma mesma coisa. Essa que é o fogo que o chão exala e a alma bebe e os demónios odeiam e querem regar de água benta.

 

Sim! Os meus demónios querem ser exorcizados. Alegam que mais vale o inferno. Que o meu amor é destino pior. Que a minha mágoa lhes traz a memória dos tempos da purga, quando ainda tinham alma e conheciam a dor. Pedem que coloque este apelo que vos lanço, enquanto escalo as paredes, com o chão em chamas. E sorrio. Louca. Louca. Louca. Louca. No tempo antigo da loucura. Quando não era doença mas condição. Quando não era incapacidade mas raça, linhagem, casta e posto hierárquico. Uma espécie de vírus transmissível pelos olhos que se evitavam na rua.

 

Todas as fogueiras onde ardi me fazem rir agora. Uma Divina Comédia, presa aos níveis circulares que Dante viu e aos outros, os multiuniversos externos onde o inferno colide com um ardor no peito, feito azia, que se expande nos poros do indizível.

 

Os meus demónios querem ser exorcizados. Alegam que mais vale o inferno. Que o meu amor é destino pior. Imploram-me, nas horas de assombro, que peça ajuda. Esta. Chamem alguém que perceba dessa coisa que é Deus. Peçam-lhe que me exorcize os demónios. Estão fartos de escalar as paredes de mim. Estão fartos do chão em chamas que eu sou. E choram.

 

Convivo bem com eles. Os miseráveis demónios que olham a janela e me povoam a história e a vida. Mas eles querem um inferno mais pequeno. Menor. Querem retornar aos círculos dantescos, onde só veem, da dor, o que a dor diz ser.

 

Por isso, peço. Em seu nome. Chamem alguém que perceba dessa coisa que é Deus. Que, de Deus, eu só conheço o Adeus. E eles dizem que não serve.

 




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2 comentários:

  1. Procura o demónio da luz ou o anjo das trevas, eles te ensinam o caminho da vida.

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  2. Realmente és uma força da natureza

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