Dentro de nós há cidades destruídas. Somos as cidades destruídas que trazemos dentro.
As imagens são claras. Ela caminha por entre os destroços de pedra. Respira o pó. Tem, nos braços, o corpo inerte e mole da cria que, agora, é somente carne dilacerada e carcomida pelas circunstâncias. Olhamos para ela e queremos que chore. Queremos que chore porque os traços da mágoa se evidenciam, deformando-lhe o rosto. Conseguimos ver os poros emanar os fluídos da alma rasgada. Conseguimos escutar o grito mudo, exalado pelas mãos que acarreiam o cadáver. E ela não chora.
Nas ruas, os corpos fuzilados, de crânio aberto e sangue seco manchando a pele, têm marcas de tortura. Formam filas organizadas no chão. Alguns, de olhos vítreos e abertos, indagam o espaço numa busca pétrea pelo deus que não lhes salvou a vida. Em seu redor, as palavras roubadas dos lábios encobrem-se no peito. Nenhuma família reclama os corpos. Os mortos não reclamam. E os vivos não choram.
Adormecida, no ninho quente e materno dos lençóis, a criança é acordada por um bombardeamento. Senta-se na cama, igual a qualquer outra cama. Esfrega os olhos, como qualquer outra criança. Ouve as bombas como música. Ouve-as como a uma oração. E ali fica. Com a naturalidade de quem nunca acordou com outro som ou conheceu outra realidade. A bomba cai. A criança não chora.
O mundo desaba. Corpos dilacerados. Cidades destruídas. Fome. Frio. Ar putrefacto. Histórias que se repetem e são unas para alguém. A morte e a destruição. Sensações rarefeitas construídas, falta a falta. O andar do tempo sobre o abismo dos impossíveis e a nossa passividade, disfarçada de distância e impotência.
Marejam-me os olhos. E choro. Percebo que sou privilegiada. Por isso. Por poder chorar. E penso. Roubaram-lhes as lágrimas.
As lágrimas.
Os filhos.
A cidade.
A vida.
Dentro de nós há cidades destruídas. Somos as cidades destruídas que trazemos dentro. E o fogo cruza-nos o céu dos olhos que choram. Ficamos. Bombardeados. Imagens que vemos. Que não vemos. Que desligamos no canto superior direito do comando. Cedemos à dor líquida do que está distante. Limpamos o rosto. Temos mais vergonha do choro do que da pútrida raça humana, que de humana tem tão pouco.
Somos autores da história que não vivemos. Sobram-nos os recursos. E choramos.
Eles não! Roubaram-lhes as lágrimas. Há só pontes em ruínas sobre o rio cheio de mágoa. Nada liga as margens entre dor e dor. Há um povo que acorda para a morte. Ou não acorda.
Roubaram-lhes as lágrimas.
Ninguém chora…
Este é o texto mais forte que já li de sua autoria Marina, me pergunto o destino dessa criança que nada mais conhece além do medo já dissolvido e corriqueiro.
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