terça-feira, 1 de junho de 2021

Confusões

 



O meu corpo é todo feito de confusões. Desarruma as gavetas mentais periodicamente. Cria tumultos e psicopatias. Tem tantos léxicos, glossários e enciclopédias privados, com juízos só seus, que, por vezes, me apetece pôr anúncios nas gazetas matutinas, em busca de quem me entenda e me traduza.

 

 

O meu corpo confunde. Já perdi a conta ao número de vezes que o fez. Continua a fazê-lo com frequência. Diziam que era coisa de adolescente. Não era. Acho eu. Ou era, e eu falhei as etapas do crescimento. Não importa. O meu corpo confunde. Isso é certo. Continua a confundir. Com frequência.

 

Muitas vezes, o meu corpo confunde solidão com saudade. São formas similares de vazio que causam azia no peito. Talvez não seja só eu! Mas é comum em mim. Recorrente. O meu corpo confunde solidão com saudade. É só quando se começam a encher os espaços de gente, as salas de chat de conversas e os telemóveis de chamadas que se compreende. A sensação agravada pela tentativa ignóbil de encontrar companhia é autoexplicativa. É uma espécie de solidão específica e orientada. Não é falta da gente mas da pessoa. E, se ela não está, o corpo bem pode chamar-lhe o que quiser… Permanece. No sossego das paredes. Na multidão. Tanto faz! E seria de esperar que o corpo aprendesse. Mas não. Nunca. Continua, insciente, a confundir. Solidão e saudade.

 

Muitas vezes, o meu corpo confunde facto com opinião. Ciente da sua condição no mundo e emocionalmente capacitado para abarcar o mundo e a sua condição nos ombros, onde se planta uma dor crónica que a própria condição do mundo causou, o meu corpo cede à escoliose e às opiniões com a mesma curvatura dúbia. Não o faz por mal. O meu corpo quer acreditar num mundo melhor e mais justo. Tem um medo terrível de acordar amanhã no mundo fascista de ontem. Às vezes, recusa-se a ver valor nos argumentos cujo sentido lhe escapa. Faz um esforço permanente. Por ouvir os outros, com todos os seus conceitos, ainda que estes carreguem muitos “ismos” nas vírgulas. Mas as sinapses passam, com rapidez, a mensagem desesperada aos lábios para que ripostem. E, assim, confundindo factos e opiniões, o meu corpo é muitas vezes mais rápido a responder do que o Lucky Luke a disparar. Já tentei silenciar essa voz instantânea de várias formas. Explicar ao corpo que existe um traço-limite. Uma fronteira. Mas não, Nunca. Ele continua, insolente, a confundir. Factos e opiniões.

 

Muitas vezes, o meu corpo confunde tédio com fome. Tristeza com fome. Medo com fome. Ansiedade com fome. A fome é uma confusão recorrente… Tão recorrente que o corpo também confunde solidão com fome, e saudade com fome… o que torna comum a própria confusão entre solidão e saudade, nesta agitação cíclica, onde tudo volta sempre ao ponto de partida. Não se cura tristeza com pão. Nem o medo. Nem o tédio. Pão resolveria, talvez, a fome dos países de terceiro mundo. E, quando penso nisso, sei que o meu corpo também confunde vontade de comer com fome. E fome com indisposição… porque aqui, no mundo do privilégio, é raro que a fome o seja de facto.

 

O meu corpo é todo feito de confusões. Desarruma as gavetas mentais periodicamente. Cria tumultos e psicopatias. Tem tantos léxicos, glossários e enciclopédias privados, com juízos só seus, que, por vezes, me apetece pôr anúncios nas gazetas matutinas, em busca de quem me entenda e me traduza. Solicita-se aos entendedores que capturem e aclarem esta forma de ser feita de contraditórios e enigmas. Mas sinto algum orgulho nas confusões que ele não faz.

 

O meu corpo, por exemplo, nunca confunde paixão com amor. Afeição com amor. Carinho com amor. Amizade com amor. Tesão com amor. Vontade com amor. Solidão com amor. O meu corpo, esse tosco iletrado emocional, parece ter gasto todos os esforços da racionalidade a descobrir exatamente o que o amor é, em factos e opiniões que não se confundem, nem poderiam confundir. Por saber exatamente o que isso significa, no entanto, o meu corpo confunde passado com futuro e vida com morte. Confunde passividade com respeito. Confunde silêncio com espaço.

 

Tento respeitar todas as confusões do meu corpo. Afastar-me um pouco delas. E percebo, quando o faço: não é das confusões que ele tem que eu quero afastar-me, mas justamente daquelas que ele não tem! E sim… eu sei que é confuso.

 

É confuso. Como o meu corpo. Como eu. Como a vida. Como o amor que só se confunde com ele próprio. Que só se funde nele próprio. Que me leva do ponto A ao ponto Z com as mesmas ideias, sem me importar se são factos ou opiniões, se estão imersas na saudade ou na solidão…

 

Surge algo em mim.

 

Um espaço. Um ardor. Um fosso.

Um eco. Uma nódoa. Um vazio.

 

Suspiro.

Acho que estou confusa.

 

Mas pode ser fome…

 







2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!


 

2 comentários:

  1. A fome representa tanto Marina, amei o uso que fez dela, das relações metafóricas e a sensibilidade de sempre, amo sua forma de expressar que é única.

    ResponderEliminar
  2. A confusão é humana. E tu captaste-a melhor que qualquer outro humano. Bravo!

    ResponderEliminar