Os outros também somos nós.
Apercebo-me disto quando noto que ganhei, com o meu avô, o hábito estranho de comer bolo de aniversário com queijo e de molhar torradas com manteiga a mais no café com leite, deixando a ondear aquela camada de gordura para a qual a maioria das pessoas olha com repulsa. Para mim é apenas normal. Carregar o meu avô em mim, nesses pequenos hábitos do dia.
A sensação volta quando, passando pela hera ocasional das cidades, repito mentalmente a frase da minha avó, “quem por hera passou e uma folhinha não arrancou, do seu amor não se lembrou”, ou quando, mesmo sem medo, hesito um momento antes de fazer algo, trazendo na memória a ideia de que “cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém”. E mais ainda quando deixo a luz acesa quando adoeço. São hábitos e frases que muitos julgam estranhos. Para mim é apenas normal. Carregar a minha avó em mim, nessa pequena ciência que traz a vida e o carinho.
Da minha mãe, trago o hábito de andar e comer sempre como se estivesse atrasada, numa correria incessante contra relógios e agendas, ou o de pôr açúcar no leite com chocolate, ou ainda o de dizer “é o que é!”, por tudo e por nada. Ganhei ainda, com o meu pai, o hábito de começar quase todas as frases por “não”, incluindo as afirmativas. E tenho pedaços dos meus irmãos dispersos na vontade de ser melhor amanhã e de me dar aos outros, de forma natural, espontânea e, muitas vezes, sem considerar os efeitos secundários dessa dose excessiva de amor. Pode ser um contrassenso para muitos. Para mim não é. É apenas normal. Carregar os meus pais e os meus irmãos em mim, nos pequenos e grandes gestos, nos passos corridos e nas negações que, afinal, ocultam uma resposta positiva.
Trago, do meu primeiro amor, expressões ocasionais. “Enfin”, “fhum fhum”. Trago dele o “erm” e o estranho encanto por uma das minhas (improváveis) bandas favoritas. Uma paixão estranha por cordas-de-viola e carros antigos. Um gosto pelos caminhos noturnos pela serra adormecida. Alguns julgam que é uma contaminação caótica de coisas que nasce de uma influência excessiva. Mas é natural. Carregar em mim o que fez desse amor o primeiro. Carregar em mim o melhor que ele tinha para dar. Trazê-lo nos lábios, em expressões que entoam ainda a mesma canção dos lábios que, em tempos, se tocaram. E que – felizmente – hoje ainda se sorriem.
Em mim, ressoam traços das pessoas com quem me cruzei e me cruzo. Algumas delas foram passagem muito breve. Algumas, talvez venham a sê-lo. Momento. Mas deixaram algo. Deixam algo. E, sem ser dona dessas partes que comporto, compreendo que também eu sou os outros. Que os outros também somos nós.
Pergunto-me se algum dia deixei algo de mim em alguém. Como deixaram em mim. Uma frase. Um traço. Um fio de cabelo de memória que se perpetue nos dias e os faça pensar em mim. Pergunto-me se algum dia deixei algo de mim em alguém.
Os outros também somos nós.
Habituamo-nos a ser, com eles, nós mesmos com algo de novo. A personalidade prevalece, mas somos, em parte, maleáveis como plasticina. E ainda bem! Se tudo em nós fosse firme, depressa o mundo nos quebraria. A rigidez magoa muito mais do que ajuda. A aprendizagem dura uma vida. Ninguém é produto acabado.
Trago muitas coisas dos outros. Hábitos terríveis. Hábitos maravilhosos. Manias. Conselhos. Ideias. Frases feitas. E ainda bem que os trago! Enchem-me de coisas e sei que sou mais do que eu...
Mas, mesmo assim, nos meus dias tristes, não gosto muito de trazer os outros em mim.
Porque – sabes?! – de ti trago o terrível hábito – quase mania - de ser feliz. E sinto que traio a parte de ti que há em mim sempre que choro. E parece que me imprimiste o impossível na pele. E preciso de não ser tu para poder estar triste à vontade.
Nos dias tristes, quando te afasto, empurrando-te com as mãos fortes do pensamento, para não gozar do prazer da felicidade inebriante à qual me habituaste, não és só tu que tiro de mim. Dispo as camadas dos outros até que não haja nem café com leite, nem canja de galinha, nem “não” nas frases, nem caminho de serra, nem passo apressado para lugar nenhum. Quando te tiro de mim, afasto também os outros. E, quando os afasto - quando te tiro de mim - sinto mais a tua falta. E a deles. E a minha.
De repente sou muito pequenina. Ali. Porque os outros também somos nós. E, ao despir-me dos outros, eu sou só eu. O meu pequeno eu. O meu insignificante eu sem os outros.
Reduzo-me ao mínimo que sou. Descubro que sou muito pouco. E fico com saudades de mim. Desse eu, quando sou eu com os outros.
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