terça-feira, 8 de junho de 2021

Se parares

 


Sabes o que acontece se parares?

Depende.

 

 

Rasgo as palavras com respostas que ninguém pediu. Agendas caóticas, fixando planos móveis. Riscando-os. Reagendando-os. Aproveitando as frestas da tarefa para encaixar o banho corrido. O treino corrido. A chamada rápida. A barra de cereais. Os meus pulmões já aprenderam técnicas de multitasking e há conferências ocasionais nos arredores do meu fígado, com sessões de brainstorming, onde se discute se o cérebro entrou de vez em época de monção.

 

O fígado fala baixinho, apodrecendo gradualmente a vodka e absinto, levando nas mãos esse copo meio vazio. Nenhum dos outros órgãos se importa grandemente com o que ele diz. A língua decadente e ébria fala da censura evidente. Mas eles têm mais o que fazer! Não há descanso que dure o tempo das exposições hepáticas fatigantes sobre a degradação do corpo. Só a melatonina se senta nessa plateia, pequenina e abandonada, sentindo que não serve o propósito divino que lhe gerou a existência. E, mesmo ela, desaparece rapidamente quando as brigadas de café invadem a alma, expulsando-a do banquinho triste que ocupara.

 

É verdade. O meu cérebro exerce papel ditatorial sobre as entranhas do meu corpo. A verdadeira razão pela qual eu nunca adoeço, é porque ele impôs normas severas sobre a realização de tarefas a cada um dos meus órgãos. Ininterruptamente, por mais de mil dias, este foi o contexto. A pouco e pouco, ele fez de mim escrava das suas vontades, repetindo, de volta em vez, uma frase-chavão:

 

Sabes o que acontece se parares?

 

É uma pergunta e uma ameaça. Eu não tenho a resposta. Ele também não. E nenhum dos dois quer tê-la. Nenhum dos dois quer descobrir. Continuo. Tudo o que sei é que pensar dói mais do que me doem as pernas. Ou os braços. Ou as pálpebras pesadas dos olhos cansados. Bebo um café. Non stop. Enquanto trabalho. Os Deuses, digo, deram-me duas mãos.

 

Sabes o que acontece se parares?

 

Entras pela sala. Param-me todos os relógios. Menos um. Compasso. Sístole. Diástole. O sangue bombeado inebria até o fígado rezingão. A oxitocina sai para espreitar o cenário envolvente. A vida é vida, mesmo com o tempo em suspensão. E o cérebro silencia-se. Toda a gente sabe que o cérebro não consegue domar um coração que ama. Lá, na sua posição de poder, revira muito os olhos, enquanto eu fecho os meus, para descansar no embalo do conforto.

 

O cérebro funciona. Desde o berço até ao amor. E só.

 

Sabes o que acontece se parares?

 

Apercebo-me de que parei. Mesmo sem querer. Parei. Apercebo-me dos passos largos ao passado atrás do véu levantado sem querer. Saem chuvas das frestas das janelas olheirentas e sem manutenção. Estou demasiado isolada. E demasiado é pouco. O coração que batia, bate-me. E o pensamento agride. Espanca-me. Trucida-me.

 

E o cérebro pergunta-me:

Sabes o que acontece se parares?

 

Respondo:

Depende.

 

Mas deveria responder:

Depende. Depende do tempo verbal.

O coração batia no pensamento parado.

O coração dói… e antes parasse!

 

Agendas caóticas, fixando planos móveis. Riscando-os. Reagendando-os. Aproveitando as frestas da tarefa para encaixar a arte de não pensar.

 

Parar não é morrer.

É estar vivo.

E dói.








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