Fotografia de Raul Pinto
Tenho a mente irrequieta. Tento
travá-la. Estender a mão imaginária em frente ao nariz e dizer: para de ser besta. Mas a mente não para.
Aponta, por sua vez, o dedo ao coração. E ele está demasiado desgraçado e feito
em lascas para sequer ripostar. Responde, lá no seu melodramatismo ridículo: sim, sim… sou o culpado de todos os males do
mundo.
Canso-me de os ouvir. Desisto. Agradeço aos elementos que me fazem mortal, humana e adulta. Afogo-me em taninos. Sirvo um copo de vinho. Seja para bebê-lo em vez de pensar ou para pensar enquanto o bebo.
O móvel dos meus livros tem fantasmas agarrados. Um deles, imagino, agarra num copo ambarado para brindar comigo. Outro, queixa-se ao fim de um gole mal dado que já atingiu o limiar da embriaguez. O mais teimoso de todos, insiste que eu devia estar a fazer planos estratégicos para reunir os dissidentes num qualquer golpe revolucionário equivalente ao 25 de Abril, mas que funcione…
No móvel dos livros, além de fantasmas, existem obras literárias. Convivem alegremente, nele, as estrelinhas de Florbela, de Pessoa, de Saramago e de Lídia Jorge; mas também a plebe do prazer imediato e simples, com narrativas fantasiosas sobre mágicos e vampiros e amores eternos, pela mão menos genial de autores de best-seller que comprovam a força do marketing, do consumismo e do capitalismo modernos.
A meio do copo de vinho, eu já li títulos que não deviam povoar a mesma estante. E já pedi a três autores com o Nobel da Literatura o favor de não se ofenderem com os romances de cordel que dormem a seu lado.
Algumas histórias na estante,
confesso eu aos fantasmas – porque ninguém vivo teria a paciência de escutar-me
– são um pouco do que me tornou quem sou. Eternamente presa a um amor que vai
além-corpo para provar que a eternidade é um espaço de nós. Não fosse – confesso-lhes – E estaria agora nos braços de alguém, a
fazer algo carnalmente mais produtivo do que falar com quem não responde.
Um dos fantasmas acende um cigarro
e outro diz-me que não posso pensar
assim. E eu continuo a beber o líquido castanho-avermelhado,
como se fosse o sangue de um qualquer messias por nascer.
Penso naquelas
pessoas que se sentem tristes e confessam os seus pensamentos mais tenebrosos. Doeu tanto que pensei que ia morrer.
Frase feita e comum. Da qual eu discordo com a força de um exército. A mim dói
tanto porque sei que não vou. Não disto. Não agora. Vou ter de viver, de
conviver, de partilhar o sofá e o vinho com a dor. E de acordar amanhã para
repetir.
Vem a saudade. Desse amor que começa a tornar-se mais patente quando dois terços do copo se esvaziou e que salta dos livros que povoam a minha estante, lançado de mão em mão num jogo da batata quente pelas mãos dos meus mortos. Ninguém quer segurá-lo e eu também não. Queima. Queima como só a saudade sabe queimar, numa chama azul-inglesa. Essa que é tristeza patenteada e debruada a dor.
Engulo. A mágoa, a tristeza e o vinho. Deixando manchas ponteadas, como reticências infinitas ou céus de estrelas rubras no vidro.
No fundo do meu copo de vinho existe literatura. É um conto impossível de mil páginas, onde o amor ainda terá muito a dizer depois da contracapa.
Às vezes, numa sala cheia, há vazio. Vem de quem já partiu há tanto tempo, que o esquecimento deveria ter tomado o seu lugar. Mas não é esquecimento. É vazio. E é assim que percebes que não é afeição mas amor.
Pouso o copo na mesa e os olhos na estante. Subitamente, estou sentada a assistir à interminável discussão da mente com o coração que se vitimiza e assume, sem pudores, que é culpado de tudo. Até do que não sabe. Até do que não viu.
Os Fragmentos de Mim estão perigosamente perto d’As Intermitências da Morte. Mas nem o fragmento é morte, nem eu sou digna daquele lugar na estante. Sou só alguém que gosta da assombração das gentes que foram e das histórias que ficaram no passado, deixando mais vazios do que memórias. Sou só alguém com uma mente irrequieta e intempestiva. Com um coração cansado e desiludido. Insistindo na literatura que mora no fundo do corpo e do copo de vinho.
Não deixo de pensar, olhando o copo vazio, que o vinho acabou mas o amor não.
Nem todas as narrativas acabam só porque alguém escreveu “fim”.
O vinho era bom...e hoje pede mais, diz o magusto!
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