terça-feira, 17 de novembro de 2020

Vergada

 Fotografia de Analua Zoé


Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Penso que poderiam estar certos.

 

 

Andei sempre vergada. Habituada a sobrar, comecei a encantar-me pelas sobras. Fosse a migalha do pão, a equipa de futebol que não ganha há cinco décadas, a religião que se queimou nos autos de fé ou o gato da ninhada que ninguém quer adotar. Porque é preto. Remelento. De pelo feio e mal cuidado.

 

Ganhei o hábito de me baixar. De me curvar. Ombros desnivelados e olhos no chão. Descobrindo que caem ao solo muitas regras infundadas quando o pensamento vagueia.

 

Foi vergada que descobri que não faz mal ter um pensamento vagabundo. Na verdade, o pensamento vadio é justamente o melhor. Sai da caixa e dorme com universos mais vastos. Não se importa muito com os constructos sociais. Evolui. Faz a diferença.

 

Fiz coleções com o desperdício. À medida que se desperdiçavam direitos, fui agarrando neles e guardando-os nos bolsos, juntamente com todos os c’s, p’s, tremas e acentos que, aparentemente, já não tinham uso na linguagem. Mas não apanhei só letras soltas e direitos inúteis. Da sucata do desperdício retirei também palavras inteiras, quando ainda toda a gente as usava mas já ninguém as sentia.

 

Vergada, fiquei com bolsos cheios de amigos que não dariam um passo por mim. De amantes que não sabiam amar. De promessas que não seriam cumpridas. E de muitas, muitas desculpas, que se colavam debaixo dos tampos das secretárias, como pastilhas elásticas roídas, mastigadas e esquecidas, sem sabor nem propósito.

 

“Amor” foi a palavra mais bonita que guardei. De a ver desperdiçada aqui e ali. Tão gasta e puída com os séculos de uso. Tive pena dela – da palavra “amor” – e agarrei-a. Juntei-a à coleção de inutilidades que colhia das lixeiras da vida.

 

Vergada, de ombros desalinhados e olhos no chão, descobri que o amor pesava mais sozinho do que tudo o resto e, em alguns momentos, deixei-me cair de joelhos na gravilha. Levantei-me sempre. Caminhei sempre. Vergada e domada pelo peso servil que apliquei ao amor desperdiçado que tinha apanhado por caminho.

 

Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Penso que poderiam estar certos. Não era mais do que a pessoa vadia, de alma ignóbil, recolhendo os desperdícios e as sobras que o mundo criava. Apaixonada pelos astros, pelos Deuses Antigos, pelos gatos pretos e as equipas de futebol que perdiam e desciam de divisão. E um pouco mais pelas letras que colecionava e pelo amor gasto, que me exigia, todos os dias, a força que eu não tinha para o carregar.

 

Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Mas ir vergada, para mim, era só ir. Andei sempre vergada. Procurando no chão os restos. As sobras. O desperdício.

 

Foi no meio de muitos c’s e p’s perdidos e sem uso que percebi que, de facto, estava apta a lutar. Fosse pelo amor colhido ou pelo futuro incerto ou pelos ideais que frequentemente ainda me pediam o trema. O trema. Mas não o tremor. Não o temor. Colhi coragem, na pilha dos desperdícios. E não tenho medo de nada.

 

Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Penso que poderiam estar certos. Mas não estavam. Porque eu não preciso de olhar nos olhos de ninguém para saber o que a alma tem dentro. O desperdício que lhes mora aos pés, nas camadas de palavra e nojo lançadas ao chão dizem muito sobre a podridão das almas. E o amor descartado dizia muito sobre o vazio do peito. E a recusa do fértil dizia muito sobre o eco das mentes.

 

Entendendo muito do mundo e da vida, acabei por erguer-me. Quando me ergui, disseram-me. Que vergar as costas era sinal de subserviência. Sorri. Andei sempre vergada. Tenho os bolsos cheios de excessos e de letras descartadas que me escrevem autos de dignidade. Uma mente vagabunda que não se limita ao horizonte pequenino do que está definido na linha que começa com maiúscula e termina com um ponto final. Tenho as entrelinhas e os inconcretos. Não faço vénias nem a pessoas nem a conceitos. E fortaleci todos os meus músculos transportando amores maiores do que a vida nos bolsos, caindo e levantando-me sem apoio nem amparo nem ovação.

 

Andei sempre vergada. Descobri cedo que o horizonte que me punham em frente aos olhos era mais limitado que o chão, onde continuavam a deitar quase tudo o que tinha valor.

 

Andei sempre vergada. Sou escrava do meu desejo de ser livre. E entendo. Que vergar as costas seja sinal de subserviência. Mas, lamento. Não sou servil. Não sirvo mais do que as minhas vontades, que colhem desperdícios e constroem muralhas de tesouros e sonhos e ousadias.

 

Entendam. Com os bolsos cheios de amor e letras soltas, descobri que também eu, por ser sobra e desperdício, era digna das palavras e do afeto. Distribuí por mim mesma muito do amor, até ele não me pesar. Só faço vénias ao que trago dentro. E o amor próprio é arma. O amor próprio é consciente e seguro.

 

Andei sempre vergada. Mas nunca me vergaram.

 

Andei sempre vergada. Mas não me podem vergar.


Marina Ferraz



Sigam também o meu instagram, aqui

3 comentários:

  1. Um texto que explora a profundidade da essência do ser...
    Adoro a sua escrita.
    A sua escrita é a sua vida...
    está la tudo...

    ResponderEliminar
  2. Aí está, a potência em forma escrita! Bravo.

    ResponderEliminar
  3. Your writing mesmerizes me...it's beautiful, makes me feel. Thank you for sharing your gift.

    ResponderEliminar