Embati contra mim mesma. Violentamente. Num instante, em frente ao espelho, descobri que aquela era eu. Não se parecia muito comigo. Mas, aproximando-me da imagem e deixando que ela fizesse o mesmo, percebi que era eu e que estava velha. Ergui o sobrolho. Trejeito de espanto que ela me imitou. E tentei justificar que estava cansada. Mas nem ela nem eu queríamos saber de desculpas.
A rua era viral e a tirania também. Aos bocadinhos, contaminando uma mente aqui e outra além, preocupava-me mais a entrada furtiva da ditadura do que qualquer doença. Doença, contei eu ao meu reflexo, era a pacatez do povo, que via acontecer e anuía. Cachorrinho de bagageira que não aprendeu nada com a História.
Presa na moldura do espelho, aquela figura cansada que era eu, quis saber o estado das coisas. Contei-lhe que as pessoas tinham medo umas das outras e que usavam máscaras. As máscaras serviam para esconder o medo mas revelavam quem elas eram. Nunca antes, na História do Mundo, as pessoas tinham usado máscara para revelar a sua identidade… – expliquei-lhe – Nunca se viu tão bem o que as pessoas são! – e acrescentei – As máscaras desvelam o que vai além dos sorrisos falsos. E, olha: é tão triste, tão oco, tão vazio, tão egoísta e ignóbil… que a prática do distanciamento social me faz sentido…
Contei-lhe da prisão domiciliar globalizada. Contei-lhe do imoral sentido da solidão imposta em lares e centros para a diferença, onde as pessoas morriam de abandono. Contei-lhe como morrera também, certamente do vírus, a constituição nacional e como se ligavam às máquinas os direitos humanos. E expliquei que os países corriam atrás da vacina – nova corrida espacial pela bandeirola em Marte – que virava tema central da narrativa pró-temor dos media.
Presa na moldura do espelho, a figura parecia ainda mais cansada. E senti-me quase mal ao explicar-lhe que não era apenas isto que se estava a passar. A doença virou negócio. A pequena mercearia de que tu gostavas fechou e o teu bar ameaça fazer o mesmo. – equaciono um suspiro porque, mesmo sem o vírus, me sinto sem ar - Os pequenos concorrentes, que já nada faziam de concorrência às grandes superfícies, estão condenados a desaparecer. As grandes marcas investiram na doença e fizeram dela – como de tudo o resto – uma forma de terem lucro.
Idealizo o cartaz. De letras garrafais, colocado em frente aos olhos cegos de quem nada quer fazer: Bem-vindo às epidemias na sociedade de consumo, provavelmente eternizadas pelos interesses capitalistas, aos quais pouco interessa que as pessoas vivam, contanto que paguem.
Embati contra mim mesma. Violentamente. Com um cansaço a causar olheiras densas no peito. Por dentro. Descubro-me velha. Estou a envelhecer sem que me permitam a vida. E questiono quantas pessoas estão a evitar viver com medo da morte.
A figura do espelho pergunta-me porque não faço alguma coisa. E eu pergunto-lhe o que posso fazer. Fica o silêncio entre nós. Nos dois metros que nos separam. Nenhuma de nós está a usar máscara. Talvez devêssemos usá-la, para abafar os soluços. E óculos de sol também. Para esconder as lágrimas.
Afasto-me. Deixo o meu reflexo com a sua dor porque a reflexão me incomoda. Olho a janela. A rua deserta além da janela. A rua viral como o despotismo dos ricos.
Dói-me o peito.
Dói-me o peito e não consigo respirar.
Hiperventilo.
Embati contra mim mesma. Violentamente. Não é o vírus mas a tirania que me está a deixar doente.
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