terça-feira, 20 de outubro de 2020

Olhos verdes

 

Fotografia de Analua Zoé


Às vezes, os meus olhos ficam verdes. Os olhos verdes favorecem-me. Olho para eles e sinto-me mais bonita. Como se pudesse conquistar o mundo.

 

Acontece que os olhos verdes são um traço que, da infância para cá, tenho perdido. Nasci com os olhos castanhos. Clarinhos, um tom acima do da avelã. Mudam de cor. Mas é só o marejar do castanho dos meus olhos que os torna verdes. Quando a mágoa se transforma em água e transborda pelo recanto remelento do olhar.

 

Raramente verdes, os meus olhos aprenderam com a vida a engolir as cascatas. Foram secando, da infância até hoje. Ressecando-me a pele e a experiência do mundo. Deixando-me com os rebordos quebradiços e crestados, numa rispidez quase crónica que, cronicamente, me deixa só.

 

Aprender a não chorar com os desgostos é consequência dos próprios desgostos. E da idade. E da maldade do universo humano. Com o passar dos anos, cursos inteiros de teatro caseiros fazem da vida um palco constante. Aprendemos a sorrir às agruras como se elas não existissem. Exibimos essa mentira formal e socialmente aceite. Deixamos que nos escureçam os olhos. E o coração.

 

Sim! A vida tem tornado os olhos verdes muito raros em mim. No meu rosto existem, quase sempre, os olhos castanhos com que nasci. Raiados de sonhos que ninguém vê e de mágoas que poucos conhecem. Raramente choro e não gosto de chorar. Gosto de ter uma força titânica, toda feita de rocha e gelo. Ainda que isso me torne, também a mim, rocha e gelo. Desmerecedora de amor ou carinho alheio. Eternamente sozinha, caminhando descalça numa estrada enregelada e coberta de espinhos.

 

Inevitavelmente, contra todos os meus esforços, algo ou alguém me motiva as lágrimas que recuso. E eu choro. E, quando eu choro – essas raras vezes - fico com os olhos verdes. Mas eu já não acho que são os olhos que clareiam. Penso que é a alma que, livre desse negrume que acumulo sempre quando tento ser forte, se deixa aclarar até que o castanho seja avelã e a avelã seja verde-azeitona.

 

Já foi preciso muito pouco. Mas, hoje, para eu chorar, preciso de muito ou de alguém que me seja muito. Quando acontece, quando alguém tira isso de mim, recebe-me os olhos verdes. Tem a minha versão mais bonita. Porque eu sou mais bonita quando choro. Mais leve. Mais humana.

 

Tu tinhas um choro fácil. E sempre detestei ver-te chorar, por mais bonita que ficasses. Na ideia de perder-te, de repente, os meus olhos ficaram verdes. Os olhos verdes favorecem-me. Olho para eles e sei que devia sentir-me como se pudesse conquistar o mundo.

 

Os meus olhos estão verdes e eu devo estar bonita. Mas o meu mundo eras tu.

 

Os meus olhos estão verdes e eu devo estar bonita. Olho para eles, no reflexo do espelho.

 

Sou uma rapariga bonita de olhos verdes.

 

Mas como é que eu vou viver sem ti?

 

 Marina Ferraz



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