quinta-feira, 1 de outubro de 2020

As palavras por dizer

 



Ficou muita coisa por dizer.

 

Gostava de te ter dito, por exemplo, que as minhas recordações seriam construídas peça a peça, com o teu velho dominó, talhadas com a ponta aguçada da tua navalha e saciadas em todos os meus copos de água tardios.

 

Gostava de te ter dito que havia de gostar de whisky. Como tu. Puro. E não só de mindinho molhado no teu copo depois do jantar. Que o beberia raramente mas sempre com a inebriada vontade de trazer-te de volta. E que, sempre que o fizesse, declamaria ilusões secretamente, em silêncio, dentro de mim, como orações inventadas na hora sobre essa religião que tu e eu criámos, nos ramos da macieira.

 

Gostava de te ter dito que me deste o melhor conselho do mundo. E que, na letra meio tremida mas alinhada da avó, o conselho se imprimiu na minha pele. Saltando da pele para a vida, ele leva-me à infância numa máquina do tempo sem horas de regresso, onde, com um olhar liberto de sarcasmo ou ironia, de cigarro entre os dedos e levemente curvado sobre e mesa de madeira onde assentavas os cotovelos, me ouviste dizer, cheia de certezas “quando for grande quero ser escritora” e, em vez de teres rido, como todos os outros, me deste o parecer mais auspicioso de todos, cheio de sabedoria e erudição: “então, escreve!”.

 

Ficou muita coisa por dizer.

 

Gostava de te ter dito que o chocolate quente nunca mais saberia ao mesmo depois de ti. Que ele era melhor contigo, já que eras o senhor do meu segredo culinário: tão mau para os diabetes e tão bom para a alma. E que também o gelado perderia o sabor, ficando mais delicioso na memória daquele murinho onde perdíamos a noção do tempo e eramos simplesmente felizes.

 

Gostava de te ter dito que, mais tarde, me tornarias pagã. Pagã como eu já era, sem saber, enquanto podia dizer-to. E gostava de te ter dito que serias o precursor da minha fé, porque me ensinaste os prazeres da terra e do mosto e das mãos sujas nas muitas vindimas que suámos juntos.

 

Gostava de te ter dito que nunca iria fumar mas que, inevitavelmente, quando não me descascasses a fruta, lhe faltaria o sabor das tuas mãos - essas que sempre traziam agarrado, entranhado, esse traço fumado, por mais que as lavasses. E que deixaria, quase por completo, de comer maçãs porque me falta, na língua, a capacidade de escapar ao sabor da saudade sempre que me faltas para as cortar.

 

Ficou muita coisa por dizer.

 

Gostava de te ter dito que guardaria o amor para o amor. Que não o gastaria sazonalmente porque sei que ele é uma colheita de ano inteiro. E que isso havia de me fazer pensar em ti muitas vezes, admirando esse amor que te via nos olhos, quando olhavas para mim. Desejando o dia em que alguém possa olhar-me com metade dessa ternura.

 

Gostava de te ter dito que me fugiu da mente a imagem débil que quase sempre tentei recusar ver. Que recordo o homem do sonho, de boné e camisa, despedindo-se contente, no rumo das Terras do Verão. E gostava de pedir-te desculpa por, às vezes, ter pressa de te reencontrar. E agradecer por me dares a força de adiar o reencontro, com fé nessa mão estendida sob mim, na luz de uma proteção eterna, etérea, que tu e eu sabemos real.

 

As palavras por dizer acumulam como pó e sedimentam. Ficou muita coisa por dizer. Ou, se calhar, não foi muita coisa. Se calhar foi apenas uma. Essa que seria, em suma, todas as coisas que ficaram por dizer.

 

Gostava de te ter dito que te amava. Que te amo. Que ainda amarei amanhã, aconteça o que acontecer.

 

Os anos passam. Todos os dias tenho coisas que gostava de te dizer. Sirvo um copo de whisky. És, talvez, aquele raio de sol entre as nuvens carregadas. Digo isto: “Acho que amanhã vai chover”.

 

Lavo o rosto com a chuva de amanhã. E engulo, de um trago, as palavras por dizer.


 Marina Ferraz




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