terça-feira, 14 de junho de 2022

Dos 16 aos 83

 



Sinto-as. Dentro de mim. Nem sempre sabem muito bem o que fazem. Mas não há problema. Porque sabem muito bem quem são... e isso basta.

 

 

Eu não nasci como nascem os outros. Novos e frescos. Bebendo da vida a novidade do mundo. Sou velha desde que me lembro. Tudo sempre me pareceu evidente e gasto. Sempre tive perguntas para colocar sobre as definições fechadas e os conceitos sem espaço.

 

É verdade. Isso não me impediu de me surpreender com as folhas das árvores e a música que cria vento. Nem de me deixar inebriar pela forma das rochas junto ao mar. Nem de me perder pelos recantos mornos da poesia. Mas não me surpreendi, inebriei e perdi porque o mundo fosse novo. Foi justamente porque ele era velho. Sábio. Repleto de maravilhas. De magia. E eu, una com ela, me quis tornar quem eu era.

 

Percebi depressa que, dentro do peito, trazia uma velha. Uma velha tão velha que não tinha idade. Mas nunca quis deixar de lhe celebrar a vida. E imagino-a com o seu rosto vincado de rugas e vivências, pelos seus 83 anos.

 

A velha em mim é sábia. Anciã. Serva da Natureza e Mãe do Mundo. Sabe coisas que me repete, em ensinamento, cantando em surdina, como se me embalasse pelos dias. É meiga e cuida de mim. Tenta cuidar dos outros, usando para isso as minhas mãos. Demora-se, por vezes, nas frestas da pele, regando-a de carícias, tentando sarar as mágoas do mundo. A velha sabe. Melhor do que ninguém. Toda a gente tem uma história triste. Toda a gente é a história triste de alguém. A velha não julga, porque julgar demora tempo e ocupa espaço de alma. Simplesmente, tenta acarinhar da melhor forma que sabe – com os séculos e milénios que cabem nos 83 anos que lhe imagino – essa verdade da vida, tão evidente e tão frequentemente olvidada – estamos todos a tentar ser felizes.

 

Mas, ainda que essa velha permaneça em mim, por vezes calma e abnegada, por vezes rezingona e rabugenta, o facto é que não está só. Percebi depressa que, dentro do peito, trazia uma adolescente. Do pior tipo. Daquelas que têm 16 anos e não querem crescer. Que se entusiasmam com a paixão. Com a amizade. Com o amor. Com as possibilidades... Que querem viver como se a vida coubesse toda num dia só. Que dão pulinhos de alegria quando recebem uma mensagem boa. Que se esquecem que vão morrer um dia. Que acham que vão morrer sempre que a vida tem uma contrariedade. Que acreditam ter entendido tudo e que vão frequentemente contra uma parede de cimento porque não querem desacelerar nas curvas do caminho.

 

A adolescente é insensata e impulsiva. Amedronta-se facilmente com as voltas inesperadas do mundo. Da vida. Mas quer vivê-las. Vive-as. Com uma intensidade louca. Tem muito para dar. Ainda não sabe bem a extensão do que tem para dar. Mas sabe que tem... e insiste que quer. Quer porque quer. Um dia, quando for a velha, entenderá porque quis...

 

Vou dos 16 aos 83 anos muito depressa. Oscilo facilmente entre a sensatez e a imprudência. E fico, por vezes, a vê-las discutir em mim, seguindo-lhes o discurso como quem assiste a uma partida de ténis de mesa.

 

Não faças isso! – Só se vive uma vez – É uma irresponsabilidade. – Quero ser livre-livre. – Vá, descansa um pouco. O mundo ainda estará lá amanhã – Se estiver! – Estará...

 

Deuses. Ouço-as. E amo-as tanto que até me arrancam um sorriso só de as pensar, nessas discussões por tudo e nada.

 

Abraço-me com os dois braços porque quero dar-lhes esse amor. Dizer: obrigada por me ensinares a encarar o mundo de frente. Dizer: obrigada por não me deixares levar a vida tão a sério. Dizer: enquanto aí estiverem, eu nunca irei estar só.

 

Mas, de repente, tenho 32. E caminho para os 33. E tenho uma adolescente de 16 anos aos pulinhos dentro de mim. E tenho uma velha rezingona de 83 anos, com críticas na ponta da língua.

 

No fim, peço-lhes levemente com licença. Mergulho novamente no ventre da minha mãe. Durmo um bocadinho ali, para descansar dessa verdade que é não ter nascido como nascem os outros. Novos e frescos.

 

Sinto-as. Dentro de mim. Nem sempre sabem muito bem o que fazem. Mas não há problema. Porque sabem muito bem quem são... e isso basta.

 

Mas há muito tempo para ir dos 16 aos 83. E o hoje é feliz-feliz. Então, por vezes, tenho a idade do meu bilhete de identidade. Olho em redor. Deuses! A vida é um lugar maravilhoso para se estar.

 

 Marina Ferraz





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