Tu achas-te melhor, não achas?
Acho. Por acaso é verdade. Acho mesmo. Há dias em que, ainda sem abrir os olhos, já o pensei dez vezes. E o confirmo quando olho o espelho, ainda sem maquilhagem e com remelas no canto dos olhos, ponteando o negro da maquilhagem que não consegui remover na véspera. Com o cabelo desgrenhado, a querer fugir do liso e a ganhar um toque selvagem nos nós e ondas ocasionais. Olheiras estendidas até à clavícula e uma borbulha a nascer na testa. Diretamente antes de vestir o fato de treino para fazer uma aula de ginásio qualquer. Olho para dentro de mim e para o meu reflexo, atiro-me um beijo com a mão e pisco o olho ao eu-refletido. Digo-lhe: tu és melhor.
Ser melhor não é ser melhor do que ninguém. Ser melhor é ser-se humano em construção. Ter a força de pôr cinco despertadores e levantar-me no toque do quarto. Aprender a gostar de uma imagem sem filtros. Ter coragem de treinar sete meses seguidos, com 15 dias de pausa intervalados e muito ocasionais e continuar a insistir que “hoje” é dia de fazer 31 flexões de braços porque ontem fiz 30 e, há sete meses atrás, não fazia duas sem sentir dores.
Ser melhor é chorar de cansaço, quando termino o trabalho às 3 da manhã, mas estar a pé às 9 horas do dia a seguir, preparada para continuar a lutar pelo meu sonho. E ir. Independentemente do cansaço. Fazer a jornada do dia com igual rigor, sem me permitir o espaço do queixume, que nada faz além de moer e acentuar os traços da fadiga. Dizer: força, só mais um esforço. Mesmo quando sei que não há um “só” na frase e que o esforço é perpétuo porque existem caminhos sem retorno e esta foi a vida que eu escolhi.
Ser melhor é ir ao supermercado num dia de mau humor, mas ter aprendido a cumprimentar os funcionários e tratá-los com simpatia, deixando uma piada que lhes cultive riso nos lábios e lembrando, no nosso âmago, que os outros não são culpados das nossas frustrações. É dar uma palavra de alento se, mesmo sem tempo, um amigo precisa de nós a meio do dia, para rever um texto, para um desabafo breve ou para um abraço virtual. É não esquecer que nós somos uma por entre sete mil milhões de pessoas e saber o nosso lugar no mundo. Não esquecer que, enquanto nos deliciamos com o sabor rico do nosso prato favorito, algures alguém colhe migalhas do solo infértil e se encolhe para morrer de fome. Falar sobre o privilégio de se tomar banho com água potável com meio mundo a morrer de sede. Ou simplesmente ter a noção de um espaço que termina nos limites do corpo para respeitar o espaço de alguém.
Ser melhor é ser-se melhor hoje do que se foi ontem. Tentar arduamente ser melhor profissional, melhor atleta, melhor artista. Ou outros melhores, noutras situações que não a minha. Tentar arduamente, em qualquer circunstância, ser melhor pessoa. Melhor ser. Melhor humano. Melhor ser humano, sempre que possível. Construir o eu que se quer ser, a pouco e pouco. Assumir que o trabalho jamais estará completo, por muito que se faça, por muito que se tente. E estar bem com o caminho. E aceitar que não há destino de chegada mas apenas caminho para andar. E melhorar o passo, a passo e passo.
Ir dormir. De cabeça leve e sem peso no peito, depois de desmaquilhar mal o rosto, para começar de novo amanhã. Sair à rua de cabeça erguida no dia a seguir. Saber que estamos no caminho certo… mas ainda não estamos lá!
E ouvir. Tu achas-te melhor, não achas?
Acho. Nem imaginas como acho!
E acho por isto mesmo. Porque sei quem eu era ontem. E, hoje, sou melhor.
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