Sabemos o quê e não o quando. E há um motivo para que assim seja.
Quando caímos no mundo somos mais
um lugar-comum. Gente que dizem perfeita, se calha ter todos os dedos nos pés e
nas mãos, como se a falta de um mindinho interessasse para definir a essência
do eu. Gente que dizem viva porque chora e que incentivam a chorar, naquele
primeiro minuto, para, depois, tentarem silenciar o choro durante o tempo de
uma vida. Somos expelidos do corpo alheio. Nunca rasgaremos outro corpo com
igual violência e nunca alguém nos amará com maior intensidade do que o ser
residente nessa casca rasgada por nós. E informam-nos que somos perfeitos. Não somos. Dizem-nos o nosso nome. Que não escolhemos. O mundo embala e
sussurra. Vais morrer, um dia.
Nascemos sem memória de nascer e crescemos sem memória de crescer. O confronto com morte é uma das primeiras realidades recordadas pelos olhos que assistem ao desaparecimento das gentes, numa cadeia que pode ou não ser ciclo. Que pode ou não ser linear. Sabemos o quê e não o quando. Mesmo antes de compreendermos a diferença entre os quês e os quandos. Mesmo quando ainda estamos a tentar perceber certos e errados que alguém estipulou, enquanto escrevia obras de ficção religiosa.
Às vezes, olho as fotografias dos idos e esqueço-me que não sou um deles. Porque os imagino no meu ouvido, a quererem dizer que me amam. Outra vez. A quererem dizer que eu sou digna de amor. Outra vez. E condenados ao silêncio. E penso. Amo-te. Mas não digo. E penso. Serei digna do teu amor? Mas não pergunto.
O prazo de validade encurta. Gasto as respirações que me sobram, sabendo que as subtraio da lista do eu. A imagem, cada vez mais certa, do dia em que a palavra presa na garganta emudeça torna-se mais cancerígena em cada respiração. Talvez vire tumor. Talvez me mate. Talvez me coma as entranhas e me faça una com o Universo, para que me olhes nas noites de nuvens altas.
Sabemos o quê e não o quando. E há um motivo para que assim seja. Para que saibamos que vamos desaparecer e não saibamos o dia, a hora, o minuto e o segundo do nosso desaparecimento. Para que tenhamos a morte destinada mas não possamos organizar os nossos afazeres, dizer adeus, marcar antecipadamente o velório do nosso corpo perecido. Foi, talvez, a única dádiva ofertada pelos Deuses.
Daqui a algumas horas. Daqui a alguns dias. Daqui a alguns anos. Quando o eu que sou não for e o eu que posso vir a ser tiver esgotado as possibilidades, não importará que tenha feito tudo certo. Os ventos soprarão nas mesmas direções e a noite seguirá o dia. E a palavra calada na minha garganta será mudez. E o silêncio perpétuo será entrecortado pela poluição sonora que fazem as cidades e pela canção entoada pelo mar.
O prazo de validade é curto. Sejam horas. Ou dias. Ou anos. O prazo de validade é curto. Sabemos o quê e não o quando. E há um motivo para que assim seja. Há um motivo para que assim seja. Por favor. Deixa-me dizer-te que te amo.
Achei tão lindo e filosófico. Ao mesmo tempo me identifiquei tanto com esse amor preso na garganta em forma de palavras mudas, me lembra um amor já perdido e eternamente emudecido pela morte. Um amor que não confessei.
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