terça-feira, 13 de abril de 2021

Uma luz acesa

 

 Fotografia de Analua Zoé




Para a minha avó


Dizias. Descansa, a luz fica acesa.

 

Conforto. A imagem do conforto acesa nessa luz que não apagavas. O teu toque de afago no meu rosto. Iluminado. Pela luz acesa. E o meu semblante doente, contrariando o sono. Um trejeito de enjoo que parecia eterno aos olhos infantis de um tempo moroso. E tu. A aliviares a dor e o desânimo. Consolando-me com as mãos enrugadas e pintalgadas de pontinhos mais escuros por entre a palidez. Com a luz acesa.

 

Menina-escuridão, de saúde frágil, quase sempre apaixonada pela sombra, eu deixava-me seguir o ritual pagão que os teus lábios católicos entoavam. Não é dormir. Só descansar. A luz fica acesa. E acesa estava, quando adormecia, sentindo o calor das têmporas febris na almofada.

 

Acordava, por vezes, com as tuas mãos trocando-me a roupa molhada por outra. Ou com o seu toque frio na minha testa, para me medires a temperatura à moda antiga, antes de enfiares na minha axila aqueles velhos termómetros de mercúrio que já ninguém usa. Água fria com açúcar para o enjoo. Xarope de cenoura caseiro para a tosse. E a luz acesa para acalmar a alma.

 

Dizias. Descansa, a luz fica acesa.

 

Acesa ficava, também, a minha fé no placebo. Esse que provinha da chama quente da luz da mesinha de cabeceira, pequeno sol errante que se alongava pelas paredes brancas do teu quarto, cortado pela figura roliça do teu corpo idoso, sonolentamente alerta a todos os meus pequenos trejeitos.

 

Eras o curativo das indisposições meninas que vinham com os vírus e bactérias do mundo. Tanto que, à medida que a criança enferma dava lugar à adulta sadia, me habituei a que ponteasses também, com suturas de afago, os males da minha alma.

 

Dizias. Descansa, a luz fica acesa.

 

Já não era porque houvesse uma lâmpada na mesa do teu quarto a iluminar as paredes. Já não era porque me deitasse na tua cama, com as tuas mãos pousando ocasionalmente na minha testa. Era porque sabias que a luz brilhava e oravas. E acreditavas nas orações que me dedicavas com um fervor só teu.

 

Habituei-me, na solidão dos dias, a deixar a luz acesa nos dias de indisposição. Mais tarde, habituei-me a deixá-la acesa nos dias em que o tempo ruía, deixando-me pequenos pontos de nada por entre as ameias do torreão da vida. A luz acesa era-me conforto, iluminando o escuro dos sentidos, dos sentimentos, dos pensamentos mais negros.

 

Gostava que ainda dissesses. Descansa, a luz fica acesa.

 

Mas, quando a tua luz se apagou, descobri depressa que a iluminação aclara os vazios da ausência.

 

Acontece que a luz-conforto não vinha da lâmpada mas de ti.

 

Deito-me e apago as luzes.

 

É mais fácil, assim, imaginar o teu afago no meu rosto.

 

É mais fácil, assim, deixar que sejas a minha luz.

 

É mais fácil assim.

 

 Marina Ferraz






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