terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Dois segundos


Fechei os olhos por dois segundos. Foram só dois segundos, não foram? Fechei os olhos por dois segundos e a vida passou.
Quando abri os olhos, não estavas aqui. O telefone tocava insistentemente. Do outro lado, ninguém. Ficava o toque intermitente da desistência. A mesa tem seis lugares mas sento-me só. Sozinha com os fantasmas que, há dois segundos atrás, eram aqueles que juravam "para sempre".
Nesta mesa, recordo, fomos seis. E depois fechei os olhos por dois segundos. Fiquei só. Fora, só dois segundos, não foram?
Retorna-me o olhar, no espelho baço, um rosto velho e enrugado, emoldurado pelo branco dos fios gastos do cabelo. Seguram-me, algures, três senhoras o mais frágil entre eles. Mas não cortam ainda. Querem que veja, que saiba quão errado foi fechar os olhos por dois segundos.
Nas prateleiras há memórias emolduradas de uma vida que perdi. Fechei os olhos por dois segundos e perdi-a. Como? Nem eu sei...
Onde foste, amor? A tua roupa desapareceu das gavetas e o pó acumulou-se nelas, em seu lugar. Não há vestígio de ti, senão esse das molduras velhas com as quais implicavas tanto. Ainda bem que não te ouvi! Como poderia saber que foste real se não me ornamentasse o corredor esse teu rosto de anjo taciturno?
Fechei os olhos por dois segundos. O pêndulo do velho relógio está parado. Mas ouço ainda o seu tiquetaque na memória. Compassava-me o pensamento e era fácil pensar. O relógio parou e pensar magoa, cansa. Porquê? De novo, insistentemente, toca o velho telefone, sem que vivalma reaja ao "olá" seco e arrastado que sai de onde antes estava a minha voz. Foram só dois segundos. Fechei os olhos por dois segundos e perdi a voz.
Na mesa vazia, na cama vazia, na casa vazia, sinto a mente cheia de quem fechou os olhos por dois segundos e perdeu uma eternidade. E a velha do espelho, chorando, parece que ri de mim.
Cansei-me de deambular por entre a poeira e as memórias emolduradas. Cansa-me porque magoa. Aquela rapariga, que era eu, nunca a fui. Por entre o sorriso, não fui feliz. Mas não fui feliz porquê, se tinha tudo, incluindo a mesa cheia, a cama ocupada, a vida plena? Por entre o brilho, não fui jovem. Fui sempre anciã de anseios e idosa de sonhos. Mas pergunto à velha enrugada do espelho: porquê?
Fechei os olhos por dois segundos. Fechei-os porque o cansaço adensou, nos tempos em que nem cansaço deveria haver. É ridículo gastar tempo de mesa cheia. Sento-me hoje só, com fantasmas e memórias. O telefone toca. O relógio já não dá as badaladas. Nenhum tiquetaque. É assustador o grito constante do silêncio que fica quando o telefone emudece.
Fechei os olhos por dois segundos. Foram só dois segundos, não foram? Fechei os olhos por dois segundos e a vida passou. Deixou-me as rugas no rosto, as memórias emolduradas e uma mesa de seis lugares, onde me sento só, desejando o dia em que nela já não se sente ninguém.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

5 comentários:

  1. Amei o texto querida,faz tempo que não comento não é mesmo?! Desculpe.
    Voltando,esse texto é magnífico,todos nós corremos o risco de fechar os olhos por apenas dois segundos tudo passar sem a gente perceber.
    Texto perfeito ^.^
    Beijinhos Jenny ♥♥

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  2. Belíssimo texto... há algum tempo que não lia os seus textos, o que é uma pena pois escreve muito bem. Os textos revelam uma sensibilidade muito particular... São poesia em prosa :)

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  3. Não conhecia o seu trabalho mas amei o texto. Muito sucesso neste novo ano.

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  4. Adorei o texto, cheguei apenas hoje ao blog, mas este texto prendeu-me.
    Também eu tenho medo de fechar os olhos por dois segundos, se calhar por sentir que já o fiz... e nem rugas ainda tenho.

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  5. Ai como este teu trabalho nos traz a tona como tudo foge as vezes ,amei e viagei...

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