Ela punha demasiada manteiga no pão. Demasiado chocolate no
leite. Demasiado açúcar no café. E, depois, esquecia-se de temperar a vida.
Ficava quieta. Calada. A olhar para o infinito. Sem tristeza nem alegria.
Somente com o vazio ponderado da abstracção.
Ela punha demasiada espuma na água do banho. Demasiado
incenso nas salas comuns. Demasiados pontos finais nos textos escritos à
pressa. E, depois, esquecia-se do aroma do mundo. Fechava-se nela. Longe. Sem
viver.
Ela punha demasiada atenção na roupa passada. Demasiadas
notas na agenda. Demasiado intento na lavoura dos dias. Demasiadas regras no momento
que passava. Mas, depois, não punha demasiado de nada nas suas vivências. No
salto abrupto e ininterrupto, cheio de normas e exageros, a vida era confinada
à infinidade desunida do nada.
Passando na rua, ela deixava no ar um sentido de urgência,
misturado no azedume de nem se notar a sua passagem. Um tudo ou nada de
perfeição imperfeita, sem nome, cheio de nomes. Cheio de penas e de planos para
amanhã. E sentava-se, sempre na mesma mesa, pedia sempre o mesmo, olhava para
mim sempre com um vazio atolado de coisas. E falava, em silêncios cortantes,
atropelando palavras na ânsia de chegar ao fim das frases, ao fim da conversa,
ao fim da vida.
Um dia disse-lhe. Disse-lhe que punha demasiada manteiga no
pão e demasiado açúcar no café. Insisti que pontuava demasiado os textos e que,
talvez por deformação, pontuava também a vida em demasia, em pontos finais que
situava, de forma atabalhoada, em frente a tudo o que a podia fazer feliz.
Apontei-lhe o dedo, disse que se importava demais com a roupa engelhada, com as
tarefas do dia, do mês, do ano. Ela punha demasiadas dúvidas nas minhas
palavras, demasiados conflitos nas nossas conversas, demasiadas barreiras entre
nós. Fazia-o como quem não sabe que pode entender que existe um mundo fora dos
obstáculos muralhados com os quais protegeu o corpo indefeso.
Então eu disse-lhe. Disse-lhe que não era ela contra mim.
Nem eu contra ela. Expliquei-lhe que, algures, havia um nós contra tudo. E,
longe de entender, ela pôs demasiados medos sobre a mesa na qual se sentava
sempre com o mesmo pedido e o mesmo olhar vazio de mente cheia. Podia ter
desistido. Mas, talvez porque a ame demasiado, escolhi ensinar-lhe a arte da
vida. E, por entre as coisas mais simples do dia, tento fazê-la feliz.
Ela ainda põe demasiada manteiga no pão. Demasiado chocolate
no leite. Demasiado açúcar no café. Ainda se preocupa com as tarefas. Ainda usa
a agenda e demasiados pontos finais nos textos. Mas está a aprender. E, de vez
em quando, esquece-se da agenda em casa. De vez em quando, não se importa se o
trabalho atrasa. De vez em quando, deixa tudo apenas para estar sentada ao meu
lado, a ver-me jogar. Começa a deixar de temperar a vida com os mesmos sabores
de sempre. Quer estar aqui. Quer viver. Sorri. Não demasiado. Na medida certa.
E para sempre.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Amei este texto... faz tanto tempo que não vejo nada teu no meu feed! Aabei por deixar de acompanhar o blogue :( Vá, pôe demasiados posts no face, por favor! A vida não pode ter tudo em demasia mas há "coisas" que demasiado... nunca é demasiado :) Gosto muito do que escreves.
ResponderEliminarBeijinho
Teresa Carvalho
E por demasiar demais é que tudo se estraga,é preciso a medida certa.
ResponderEliminarAmei o texto querida ^.^
Beijinhos Jenny ♥ ♥
O que este texto não tem em demasia são sentimentos... Parabéns :-)
ResponderEliminarÉ verdade, é preciso moderação para a via não passar sem a termos vivido.
ResponderEliminarSó conheci hoje o blog, mas adorei os textos! Parabéns :)
Diferente dos demais gostei em enorme demasia,que diferenciou DEMASIABAMENTE, parabens em demaSia
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