terça-feira, 21 de abril de 2020

Um amor de conto de fadas



Fotografia de Analua Zoé 



Disseram-me que eu queria um amor de conto de fadas. Desculpem. Não. Já não. Agora não. A última coisa de que estou à procura é de um amor de conto de fadas.

Eu tive um amor de conto de fadas. Daquelas narrativas meio desenhadas, onde não temos a certeza se saltámos o ecrã e tomámos forma animada, num universo onde os ratinhos nos calçam os sapatos e os passarinhos nos penteiam os cabelos.

Nesse meu amor de conto de fadas, tudo começou com canções. Elas entravam pela janela aberta na tela do computador. E inebriavam os olhos que marejavam, sorvendo a água das nuvens e fazendo raiar o sol pelas frestinhas do vidro, de onde pulavam arcos-íris, quarto dentro.

O meu amor de conto de fadas beijou-me numa noite de fogueiras acesas na praia e numa noite onde rebentaram cores dispersas pelo céu noturno, em fogo-de-artifício. Nessa noite, para nos ver, até a lua se chegou um pouco mais perto da Terra, como não fazia há séculos e, por séculos, tornará a não fazer.

O meu amor de conto de fadas entrou na minha vida com as mãos vazias mas de coração pleno e olhos cheios de mar. Disse-me que todo o nada que tinha se enchia com a esperança de ser meu. Então, encostados a um símbolo papista e de olhos postos num mundo pagão, com vistas até ao infinito esclarecedor do mar e sobre as copas de mil árvores, ele pediu-me. Tinha trejeitos de criança na voz, como se temesse, mas um jeito de príncipe encantado, banhado de sol e sombra, na tarde mais quente do ano. E eu dei-me. Completa. Sem pôr medidas e sem fazer planos de contenção para o caso de tudo correr mal. O sol aquecia o ar e a paixão aquecia as veias. Arrefecemos nus, algures, numa cama aos pés de um Palácio de Pedra.

Avançou a história do meu amor de conto de fadas. Os sons de canção passavam por debaixo das portas e pelas fechaduras. Era um musical feito pelos melhores produtores do mundo. A encher-me a vida e o peito. A permear cada pedacinho meu. Princesa encantada no reino da dívida fácil, paga de bom grado com mãos desertas que sabiam que a plenitude residia noutras mãos.

Deuses. As mãos. Se não se davam aos pianos e às cordas de guitarra, davam-se às minhas. E era tudo o que um conto de fadas pode ser. Mas, vocês sabem, não há conto de fadas sem enredo nem enredo sem desgraça. Todos os romances sem intriga poderiam ser apenas uma receita de bolos. E, por isso, um amor assim teria dias escuros e negros. Sombrios e desesperados. Por entre eles, só a esperança de que os protagonistas não sucumbissem às trevas.

Somos humanos. Não podemos deixar de sucumbir ao que, tão concretamente, trazemos dentro. Lutei contra fumo. E o fumo dispersava à minha volta. Prendia-se às minhas roupas. Aos meus cabelos. À minha pele. Havia mares de inverno nos olhos que, outrora, me tinham sido doces e a sua mágoa gelava-me a alma e fazia-me sentir que o vilão era eu.

Um dia, percebi que os amores de contos de fadas terminam no momento da união por um motivo. Há histórias que não devem continuar além do clímax da sua felicidade. Mas somos humanos. Não podemos terminar a história encostados a um símbolo papista e de olhos postos num mundo pagão ou enquanto arrefecemos nus, algures, numa cama aos pés de um Palácio de Pedra. Então, aceitamos que, lá à frente, vamos morrer muitas vezes às mãos do amor. E cada fim é uma morte, de onde não renascemos inteiros.

É que os contos de fadas são histórias irreais e nós somos humanos. Nós somos humanos e feios. Reais como o mundo.

Desculpem. Não. Já não. Não quero um amor de conto de fadas. A última coisa de que estou à procura é de um amor de conto de fadas. Desta vez, para variar, gostava de um amor de verdade.




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1 comentário:

  1. A fantasia é, de certo modo, inseparável do amor.
    Uma pitada de conto de fadas pode temperar um amor verdadeiro. Q.B.

    Muito bom Marina =)

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