terça-feira, 18 de agosto de 2020

Migalhas

 



Viver faz migalhas

 

Isso mesmo. Viver faz migalhas. Seja no pão trincado descuidadamente, na areia dos sapatos, no escamar da pele depois do verão ou no coração partido.

 

Viver faz migalhas.

 

Passamos o tempo a varrê-las. As migalhas da vida. Algumas para os caixotes, algumas para debaixo dos tapetes, algumas para dentro da garganta, engolindo-as em seco e deixando-as arranhar no peito, onde ficam a esfoliar as paredes ocas dos músculos, dos ossos, dos órgãos até sedimentarem outra vez e serem parte da muralha de nós.

 

As migalhas podem bem ser lixo. Mas muitas vezes não são. Muitas vezes são um fragmento válido de algo que ainda pode misturar-se em lágrimas para as absorver ou para se dissolver nelas. Uma espécie de amor em pó que cria tonalidades cristalinas nos sentidos e os acorda, mesmo quando, durante tanto tempo, estiveram dormentes.

 

Não vale a pena tentar limpar os pés na entrada ou colocar um prato debaixo da sandes. Não vale a pena passar loções untuosas no corpo nem segredar mentiras sem nexo aos fantasmas que moram em nós. É tudo uma questão de entender. A vida erode tudo o que é concreto. Seja pelo vento, pelo bater das ondas na rocha firme do véu, ou pela ação humana, em mãos que vibram nas teclas, nas cordas, nos corpos. A vida destrói. A vida desfaz.

 

Viver faz migalhas.

 

Até as estrelas que moram longe da realidade humana foram um dia poeira. Migalha. Parte menor de uma história universalmente grande. À espera de ser luz, explosão, migalha outra vez.

 

Até as árvores, donas de raízes vastas e ramos fortes, foram um dia semente. Migalha. Parte menor de uma história naturalmente grande. À espera de ser ar, vida; migalha outra vez.

 

Não sou pessimista. Mas também não sou mais do que a estrela e a árvore. Migalha a tentar ser gente e que, passo a passo, se desfaz em fragmentos pequeninos, descobrindo o que é amor. Da maneira mais simples, sem querer defini-lo.

 

Viver faz migalhas.

 

Estas que trago no peito insistem em viver comunitariamente com a mesma ideia e o mesmo credo. Vivem de paixão, de sentimento, de querer(-te). Falam umas com as outras. Discordam umas das outras nas discussões sobre a política mundial e questões filosóficas mas concordam que o amor és tu. E, por concordarem só nisso, tornam-se partículas quase invisíveis de amor, que vou espalhando, por onde passo, sem pedir retorno.

 

Penso, muitas vezes, que gostava que cada migalha desse amor fosse semente. Que crescesse e se reproduzisse e multiplicasse até que este sentimento pudesse ser entendido, já que não pode ser partilhado.

 

Sim. Semente. Imagino que o amor se semeie porque amar exige um trabalho diário, permanente, eterno… e duvido que pegue de estaca ou que se crie por geração espontânea justamente por ser assim. Então tento. Espalhá-lo por aí. Enquanto insisto na mesma ideia. Uma ideia que incomoda sobre como tudo se erode e destrói até ser fragmento do que era.

 

A minha mãe varre o chão, descontente, e reclama. Não puseste o prato debaixo da sandes. Não pus. Ela tem razão. Mas é o que é. Desculpa. Viver faz migalhas.

 



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2 comentários:

  1. Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

    a) Vem brincar comigo. b) Onde se come, ficam migalhas.
    Raquel Nobre Guerra❤️🖤❤️

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  2. Por vezes comemos essas migalhas da vida. E por vezes é ao contrário.

    Bonito e bom texto. =)

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