Fotografia de Raul Pinto
Apanharam-me desprevenida. Uma vez ou duas. Ou meio milhão
de vezes. Ninguém está a contar. Exceto eu. Eu estou. A contar. Mas não gosto
de pensar em números. Pensá-los traz-me amargura. Não por ser incompreendida
mas por não compreender. Como podem. Eles. Aqueles que não precisam de nome,
pela massa perfeitamente homogénea que os aglomera numa suposta normalidade.
Como podem?
Apanharam-me desprevenida. Falaram de Deus e tentaram
roubar-me a fé, porque divergia da deles. Em algumas das vezes, porque eu era
mulher, disseram-me que Deus não vê diferença entre homens e mulheres. E depois
trataram-me mal por ser mulher. Noutras, disseram-me que Deus não vê diferença
entre pobres e ricos. E, depois, trataram-me mal porque não tinha dinheiro.
Ainda noutras, disseram-me que Deus não vê a diferença entre os corpos. E,
depois, trataram-me mal porque o meu não era perfeito. Quando me roubaram a fé,
pensei. Eu não tenho culpa que o vosso Deus seja cego. Ou iludido. O mundo é
cruel. A igualdade morre onde começa a fome. Onde começam as pedras lançadas na
praça pública. Onde começa o esconder do rosto no braço que se estende para
pedir esmola.
Apanharam-me desprevenida. Em algumas das vezes, encheram-me
os ouvidos de palavras, distraindo-me enquanto me metiam as mãos nos bolsos
para roubar o que houvesse de felicidade. Noutras, as mãos sob as roupas, para
procurar um prazer, disfarçando luxúria com um pretenso amor. Quando me
roubaram a felicidade e o decoro, eu pensei. É perdoável. O roubo da felicidade
e o uso do corpo, isto é. Mas, por favor. Não conspurquem a palavra amor. O
amor não tem culpa que o mundo seja cruel.
Apanharam-me desprevenida. Estenderam-me mãos, dizendo-me
que podia largar os corrimões da escada que ruía, na madeira embebida de
lágrimas e podre. Podes largar o
corrimão. Agarra-te a mim. Apanharam-me desprevenida e com vontade de
acreditar que o mundo não era cruel. Quando me roubaram a força, vestiram
máscaras de amizade e de companheirismo. Deram-me abandono, deixaram-me caída
no chão. Um ou outro – entre esses “eles” homogéneos – riu-se de mim. Ali. No
chão. Porque tudo o que me sobrava era isso. Chão.
Apanharam-me desprevenida. Por ter sido apanhada
desprevenida tantas vezes, compreendi que podia sobreviver. Mas que, para o
fazer, só havia dois caminhos: ser como eles ou ser melhor do que eles.
Escolher o cinismo e a mentira ou escolher a dor e a aceitação. Escolher ser quem
rouba ou quem fica até sem as sobras, sem chão.
Não vão apanhar-me desprevenida. Ainda que o meu coração
seja dócil e fácil de ferir. Estou preparada. Quando me roubarem o chão, eu vou
escalar as paredes.
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Gostei!
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