terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Os telhados de Lisboa


Fotografia de Analua Zoé 


Eu gosto dos telhados de Lisboa. Daqueles terraços largos e com horizonte distante, que saltam por entre o aguçado delinear das ruas coloridas que bebem luz. Da sensação falsamente pura do ar que toma a forma de aragem. Da proximidade das pequenas nuvens que ponteiam o céu. E do resplendor do Tejo, que parece feito de ouro líquido. Eu gosto dos telhados de Lisboa.

Nos telhados de Lisboa - ou não fosse a moda a ditar que neles se colocassem bares, cafés e restaurantes – existe uma vibração turística da vida. Subir aos telhados de Lisboa é sair de Portugal para entrar num universo distinto, onde se encontra uma face multicultural da vida. E a minha língua de mel mistura-se, aos poucos, com o entusiasmo do inglês, do mandarim e do francês. Revolve-se nos tons goiabados de alguém que a partilha noutro sotaque e tem um acento angolano aqui e ali.

Os telhados de Lisboa sabem a café, amêndoa amarga, sidra de maçã e vinho tinto. Para mim. Mas muitos dirão que sabem a gin tónico pontuado de pimenta ou a cerveja. Sabem ao que cada um quiser que saiba. Sabem a mundo. E eu gosto. Gosto muito dos telhados de Lisboa.

De telemóveis nas mãos ou com máquinas fotográficas das melhores marcas, tentamos todos, com a mesma sofreguidão, levá-los para casa: esses telhados, com as suas paisagens e as suas festas e as suas gentes. Mas falhamos. Falhamos multilinguisticamente nessa tarefa de os levar para casa. Porque nenhuma fotografia lhes faz justiça.

Libertando-nos da frustração da incaptável essência desses telhados, lá nos deixamos partilhar sorrisos e palavras. Por vezes, se a noite cai, deixamos que o sol nos convide para o melhor espetáculo do dia, quando a cidade fica com um arco-íris horizontal, na linha recortada do seu horizonte mágico. E eu gosto. Gosto mesmo desse pôr-do-sol que acontece sobre a linha da cidade que eu escolhi tornar minha.

Perder esse espetáculo é ganhar outro. Se a noite já quedou, a cidade iluminada faz lembrar um Natal que nunca acaba. O passar de carros na distância lembra uma chuva de estrelas no chão. Pisamos as nuvens, olhando a cidade mística que Ulisses estreou. E vamos lá, ao tempo de uma mitologia que Lisboa não deixa morrer. Às vezes, isto acontece ao som do fado, para nos recordar que a tradição ainda é – e será sempre – o que foi um dia.

Os telhados de Lisboa são uma recriação moderna do seu bairrismo, ainda que muitos não o vejam. Porque se cria, nestes terraços elevados da cidade, um sentido do que é viver Lisboa em vez de se viver nela.

E eu gosto. Gosto muito dos telhados de Lisboa.

Eu gosto dos telhados de Lisboa. Gosto deles porque não há nada para não gostar. Mas, acima de tudo, amo-os porque não estás neles. Não tenho uma única memória tua ali, que me arraste para o abismo. Então, nos telhados de Lisboa, consigo estar mais perto do céu. Mais perto do sol. Mais perto de mim.

E é nos telhados de Lisboa que me apercebo de que, às vezes, morro de saudades minhas. De quem eu sou quando não estou agarrada às memórias de nós. De quem sou, além das tuas palavras, que continuam a ecoar nos meus ouvidos e me derrubam. De quem sou, independentemente de ti e de todo o nada que às vezes sinto que me tornaste.

Eu gosto - realmente gosto - dos telhados de Lisboa.

Hoje, com leve aroma de rio, amizade e café, este telhado sabe a liberdade.





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