quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Livres


Fotografia de Analua Zoé 


Eu não sou livre. Livres são as palavras que me povoam a alma.

Deixo-as fazer o que quiserem. Muitas vezes elas têm coragem de dizer, em mim, coisas que eu nem tenho coragem de repetir. São caóticas e devassas. E prostituem-se emocionalmente, em troca de vírgulas e travessões.

Detestam a solidão. Essas palavras. Usam sempre os pontos aos pares para fazer introduções ou em trio para fazer reticências. Dentro de mim, nunca nada acaba em ponto final parágrafo. Ou acaba em exclamação ou em pergunta. Mais vezes em pergunta porque as palavras em mim têm muita dificuldade em traçar linhas retas! Andam permanentemente embriagadas, seja de absinto ou de ilusão.

São profundamente inocentes. Principalmente se considerarmos que também o linguarejar obsceno lhes pontua as frases. Mas são inocentes. Porque acreditam no amor e nos contos de fadas. Dizem que são detentoras de inteligência emocional e eu questiono, muitas vezes, se isso não é um sinónimo eufemístico de pura estupidez.

Mas o questionamento importa pouco. As minhas palavras são ditadoras. Modelam as minhas ações e são rainhas do mundo da decisão imponderada. Prendem beijos no sofá sujo e arrancam roupas pelo chão como quem semeia nudez. E querem sentir-se preenchidas por verbos e adjetivos insensatos, como se eles lhes dessem a cor contundente que o mundo – cheio de gente que só vê a preto e branco – lhes tenta roubar.

Riem. Riem alto. E choram. Igualmente alto. Não se importam minimamente com as opções do léxico e da semântica. Estão ideológica e literalmente a marimbar-se para a forma estética, métrica e patética como a gramática estipula que elas devem colocar-se para formar frases com um mínimo de sentido.

Fazem excursões em mim. Pelas veias. Ora me entram nos limites do pensamento, ditando ideias mirabolantes; ora me passeiam pela pele, estimulando sentidos eróticos sobre o que já aconteceu comigo e sobre o que se imagina que, num tempo de vida humana, possa ainda acontecer.

Como não são humanas, as palavras brincam com a minha mortalidade e vão dizendo que querem que eu seja imortal. De pouco adianta negar-lhes a vontade. Elas insistem. Dizem que, quando o meu caixão baixar à terra, não haverão de ir comigo e que, por isso, serei eterna. Minando-lhes alguns pontinhos de razão, eu escrevo-as na pele, em tinta permanentemente entranhada na derme. Para poder, pelo menos, levar uma ou outra comigo para a sepultura, no dia em que adormecer.

As minhas palavras adoram-te. E eu ainda tentei mantê-las atrás de grades. Mas, maleáveis e fluídas, elas fugiram-me dos dedos e dos lábios, sem que eu tivesse controlo. Mas não é só sobre ti. É sobre tudo. As palavras saltam-me das mãos e do peito, em verborreias escandalosas, por tudo e nada. E a vontade nem é minha. É delas. Embora eu viva permanentemente com os danos causados pelas suas vontades egoístas.

As pessoas olham para mim, nesse largar de conceitos e de normas. E dizem. Que sou livre. Aplaudem a liberdade. A minha suposta liberdade. Mas eu não sou livre. Sou escrava destas palavras que me dominam, me controlam e me definem.

Eu não sou livre. Livres são as palavras que me povoam a alma.






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1 comentário:

  1. As palavras que nos algemam para poderem correr, são as melhores. =)

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