Ontem vi o pôr-do-sol e, depois, caiu a noite. Ontem
foi há mil anos atrás.
Foi o último pôr-do-sol sem mágoa. A última vez em que
acreditei que, no dia a seguir, haveria luz. Vimo-lo antes de anoitecermos
também, de mãos dadas em frente à televisão, onde se atravessavam pedras para
lugares distantes no tempo.
Das inveteradas lutas, algures na Escócia, sacámos risos
latentes, que plantados debaixo dos olhos taciturnos, de pouco valiam.
Deixámo-nos inebriar pelo romantismo verde, de capas vermelhas que se digladiavam
e amores eternos que se deixavam prometer, em campo de batalha.
Talvez tenhamos identificado, ali, o nosso amor, depois do
sol posto. Esse campo de batalha, tão deserto de oportunidades, onde ainda se
acreditava no amor. E talvez por isso, esquecemos que a televisão estava ligada.
Libertámos os corpos de roupa tão depressa que não houve tempo para que nos
apercebêssemos da nudez.
Pensámos em ir para o quarto. Mas nunca chegaríamos ao
quarto, porque o desejo queimava. As tuas mãos na minha pele e o sabor dos teus
beijos nos meus lábios. O sol tinha voltado a nascer, depois de adormecido no
mar. E, de resto, ali, éramos nós o sol. Um calor estridente de afagos que se
comprometiam, aos poucos, com carícias mais e menos bruscas.
Olhava para nós o futuro, com um riso na voz carente. E os
Deuses tinham tapado os olhos para não ver. À medida que fazíamos amor no sofá,
ignorando todos os princípios toscos que nos tinham ensinado em casa e no
colégio católico, deixámo-nos estar tão perto um do outro como um ser humano
pode estar.
Depois do pôr-do-sol, esse foi o nosso pôr-de-lua. Suor e
saliva trocados, juntamente com palavras de amor e de prazer. Sem pudores
toscos. Sem medo de nada. Com os Deuses a olharem para nós, desaprovando a
ideia. Hoje, é quase como se conseguisse recordar-lhes o sussurro aos meus
ouvidos. Pobre coitada, que mal sabe o que a espera. Mas, naquele dia, não ouvi.
Os Deuses não! Ouvi-te a ti a dizeres que me amavas. Loucamente encantado pelo
meu jeito de mulher. Sem pena de nada e com fome de tudo. Porque a vida tinha
tanto para dar.
A luminescência intermitente da televisão nos teus olhos
dava-lhes uma tonalidade de mar. Lembrando as horas antes, quando o sol nele se
punha. E quase vislumbrei o fantasma da felicidade ali, saltando, de esperança,
querendo devolver o fogo que nós tínhamos perdido.
Sim… perdido. Mas naquela noite não. Houve algo no
pôr-do-sol e na luta antiga entre povos que me fez acreditar. Pela última vez.
Sem eu saber que era a última vez que acreditava.
É verdade. Foi o último pôr-do-sol sem mágoa. A última vez
em que acreditei que, no dia a seguir, haveria luz. E, embora me sobrassem dias
para te sentir o calor, eu sabia: Todos os dias seriam sol posto, na contagem
decrescente para um adeus sem retorno. O sol pusera-se para dar sombra à minha
sepultura, talhada de dor sob as pedras da solidão.
Acordei para a desolação e o desalento. Disse que sabia que
ias, olhando para os olhos onde já não havia sombra nem fantasma de felicidade.
Aceitei, porque só isso pode fazer-se, a decisão da partida. E, mesmo depois,
com prazo de validade estipulado, deixei que o meu corpo fosse teu outra vez,
muitas vezes… e não as suficientes.
Morri.
Foste e eu morri. Respiro e ainda estou morta. Vou estar
sempre morta. E tenho saudades tuas. Mas muito mais saudades desse último
pôr-do-sol. Porque foi última vez em que acreditei que, no dia a seguir,
haveria luz.
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