terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Rebeldes

 

Fotografia de Skitterphoto

 

Tiveram o desplante de ser. Rebeldes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu.

 

 

Quando o sol nasceu, eles ainda estavam deitados. Corpos meio suados, meio despidos, com as pontas dos pés tocando-se, ao de leve, debaixo das cobertas. Acordaram aos poucos, com o sol, para descobrir que a tirania tinha ganho as eleições e que a terceira força política era, agora, um antro de fascismo. Sabiam que não era uma notícia “de hoje”. Era uma construção de muitos anos, ancorada na iliteracia, no ciclo sucessivo e repetitivo que colocava sempre a mesma elite déspota no poder.

 

A política era importante para eles... mas não era tudo. E, por não ser tudo, não foram as notícias a primeira partilha da manhã, mas os corpos – esses que, já meio despidos, acabaram por se libertar do resto das roupas, e que já meio suados acabaram por fazer um pequeno Verão no meio das cobertas húmidas.

 

Disseram bom dia. Depois. Só depois. Ambos cientes de que, se olhassem as manchetes, não teriam “bom dia” para dar. Uma espécie de azia no peito, por detrás dos sentidos, colou-lhes os pés ao chão para o dia que começava. Para o trabalho que chamava. Para as tarefas que urgiam.

 

Partilharam, ao longo do dia, algumas notícias e artigos de opinião, não só entre si, mas com os amigos comuns. Por detrás da partilha, a memória desmascarada de muitas manifestações que faziam da bandeira nacional capa de um herói qualquer que a Marvel renegou. Por detrás da partilha, a memória da luta que tinha resultado em quase-nada. E teria sido nada, se não se tivessem, pela manhã, com os corpos suados e as pontas dos pés tocando-se, até não serem só as pontas dos pés a tocar-se.

 

Assistiram. Sentados em frente aos computadores e atrás de textos e tarefas bem distintas, ao adensar da mágoa causada pela insistência na distância, no medo, na narrativa fatal da curva achatada que – insistiam – só achatava curvas de sorrisos que mereciam pintar o rosto.

 

Tendo o desplante de ser. Rebeldes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu, eles renegaram a distância e combinaram encontro. Na mesma cama, no mesmo suor, na mesma ideologia esquecida e repetidamente deixada, espalhada pelo chão da casa, com as roupas.

 

 

 

Tiveram o desplante de ser. Felizes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu a importância das manhãs nuas ao sol nascente e dos abraços e da luta pela liberdade.

Ser feliz nunca foi mais raro.

 

Partilhar(-se) nunca foi mais raro.

 

Viver nunca foi mais raro.

 

 

E mais de dois milhões e duzentas mil pessoas querem que assim continue.

E mais de um milhão e quatrocentas mil pessoas não querem mudar de facto.

E quase quatrocentas mil pessoas querem que a felicidade, a partilha e a vida voltem ao tempo dos campos sem cravo, onde nem vida, nem partilha, nem felicidade têm lugar.

 

 

 

 

Tiveram o desplante de ser. Rebeldes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu.

 

Por isso, abraçaram-se na noite. Dispostos a lutar até ao último suspiro por esse direito. O de ser. De partilhar. De viver. Ainda hoje. E outra vez amanhã. Quando o sol acordar para iluminar a tirania que se instalou.


 Marina Ferraz





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