terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Duas cadeiras no alpendre


 

Há duas cadeiras no alpendre. Ninguém se senta nelas. Não há memória de que alguma vez alguém se tenha sentado nelas.

 

 

Há o espelho do caos. Lá dentro. Destroços. Destruição. Aqui e ali, indício de tempo que passou. Como se o caos não fosse caos, mas passado. E futuro. Porque não há quem tenha espaço para se mover entre os cacos sem os pisar.

 

Duas ou três almas bateram à porta. Entraram e saíram. Sem nunca se sentar nas cadeiras do alpendre. Encantadas, provavelmente, pelas cadeiras do alpendre: promessa de descanso e contemplação do belo. Promessa de sol e sossego. Entraram e saíram. Mais depressa. Mais devagar. Aproveitando uma refeição ou outra. Um leito ou outro. Entraram e saíram.

 

Alguns tentaram. Verdadeiramente. Ficar. Organizar esse caos da casa destruída. Como se imaginassem o chão limpo e os fragmentos varridos. Como se quisessem fazer da sala atolada um salão digno de festas palacianas. Como se quisessem vidros translúcidos para ver a paisagem em redor. Tão bonita.

 

Se esta casa fosse minha...

 

Havia sempre as palavras. Conjuradas, como quem invoca os Deuses.

 

Se esta casa fosse minha...

 

Mas a casa não era de ninguém senão sua. E o caos era parte. Tal como a sala e os quartos. E os vidros sujos. E os cacos velhos.

 

A casa sabia que a cerâmica partida no corredor era uma história com vinte anos. E que as serpentinas acumuladas no canto eram o beijo inesperado no final de um concerto qualquer. E que a fotografia caída, empoeirada, era uma lágrima que pendia, como o candeeiro onde se tinha apagado a esperança, e cuja lâmpada fundida permaneceria assim até ao nascer da aurora. A casa amava a racha no vidro da porta, contra a qual o amor tinha embatido. A casa adorava o sopro do vento por entre a janela estilhaçada pela pedra do amante proibido, que entrara à socapa, subindo a trepadeira seca. A casa queria que o relógio parado continuasse a indicar a mesma hora.

 

Alguns tentaram. Verdadeiramente. Ficar. Organizar esse caos da casa destruída. Mas a destruição era o que fazia daquela casa um lar. E, por isso, apenas os passos fantasmagóricos de uma memória perpétua se faziam dançar, sobre a poeira, por entre a ruína.

Há duas cadeiras no alpendre. São os meus olhos. Ninguém se senta nelas. Não há memória de que alguma vez alguém se tenha sentado nelas. Ninguém se sentou nelas. Quando a noite cai, às vezes eu sento-me. Em ambas. Sou todos os meus eus, ali sentada. Oculta pelo manto negro. Vulto incorpóreo, guardando todos os meus cacos tristes.

 

Existe a lenda de que alguém me viu.

 

Um mito.

 

 

Há duas cadeiras no alpendre. E, acreditem: Ninguém – jamais – se sentou nelas.


 Marina Ferraz





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