terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Latência dos momentos

 


 

A bala atinge o peito. E o tempo estremece. Oscila nos microssegundos que ela leva a atravessar o ar, até explodir na carne. Entre o metal da arma e a polpa dos tecidos, há apenas momento. Latente.

 

 

 

As manhãs nascem sempre devagar. O sol tem preguiça de nascer. A luminosidade não quer abrir os olhos ao mundo. Nem eu quereria, se fosse luz... ver o mundo cansa.

 

Foi nisto que eu pensei, quando a bala embateu no peito. Ignorando os momentos latentes que separaram o dedo no gatilho e o encontro inusitado contra o oco de mim. E foi isto que me acompanhou na queda até ao solo, onde me desfiz, peça de mármore branco, sem outro destino que não o de cumprir os desígnios da vida.

 

De cada vez que alguém cai no chão, soprando um último sopro, cumpre-se o destino evidente que se sagrou na fecundação. Também esse momento latente, de óvulo invadido, gerando uma promessa de morte lá à frente.

 

Podia ter pensado em muitas coisas. Mas pensei na preguiça do sol e da luz. E na forma como eles dançam, ao longo do dia, uma espécie da milonga muito lenta, arrastando as pernas até ser hora de molhar os pés no mar.

 

Pensar em luz, levou-me até ti. Pensar em ti, levou-me a sorrir. E sorrir fez-me pensar no quanto amava a bala que, finalmente, me tirava o vazio do peito, valorizando-o com o aço amolgado, de listras-universo definindo impressões digitais do disparo.

 

Cabem muitas coisas num momento só, mas a nossa realidade é curta. A lente está focada no interior das amarras. Somos amplamente cegos e reduzimos o mundo todo ao corpo. Quando ele cai. Só quando ele cai nos apercebemos de todos os grãos de poeira no ar, de como ondeiam e dançam. Do som do vento. Das vozes distantes. Do pequeno sismo provocado pelos passos que correm, cada vez mais distantes. E as sirenes, cada vez mais perto. E o arrastar de um papel velho.

 

O momento latente que separa a vida da morte é o espaço que define as cordas do universo e o amplifica em nós. E o sol nasce tão devagar. E a luz está tão cansada.

 

Fechar os olhos é ver traços ambíguos da paisagem abandonada. Há um rio que se faz poça. Afogo-me nele. Entranho nele todas as peças distantes da alma. Até me sentir menos vazia. Por um momento. Só um. Latente.

 

 

 

A bala atinge o peito. Entre o metal da arma e a polpa dos tecidos, há apenas momento. O corpo encontra o chão e esvai-se em sangue. Momento. O sol renasce. A luz acorda. Devagar. Bate-me no rosto. Transforma a imagem do sonho no sonho da imagem. E abro os olhos. Trago nas mãos a miragem do futuro. E o momento latente em que penso em ti, disparando a arma que me mata. Por ter acordar. Como o sol e a luz. Desse sonho bom que é não ser.


 Marina Ferraz





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