Ela fez o impossível. Acordou. Acordou na madrugada
pardacenta de uma noite que ainda não vira o fim. Chamou a alma e a dor.
Disse-lhes "bom dia" com desapego. Desceu as escadas, bebeu um café
forte e outro mais forte a seguir. E abriu os olhos à vida, num espreguiçar
guloso de quem deseja mais uns minutos de cama.
Ela fez o impossível. Agarrou nas folhas rabiscadas da
sebenta. Atirou os livros gastos do uso para dentro da mala. Foi para o canto
mais longínquo da casa trabalhar. Pousou os olhos nas coisas, levou a mão à
caneta e simplesmente fingiu que o mundo acabava ali. Que começava nas frases
mais simples e se estendia às definições mais difíceis de encaixar na mente.
Ela fez o impossível. Passou as mãos nos cabelos, confusa, e
prendeu-os, aproveitando cada movimento para libertar os músculos tensos das
muitas noites de insónia. Respirou fundo. Ouviu o silêncio e cansou-se dele com
a facilidade óbvia de quem tem muito para fazer.
Ela fez o impossível. Comeu à mesa. Falou de trivialidades.
Fingiu que se importava com o estado do tempo ou do país. Fingiu que queria
saber qual o estado do seu signo para aquele dia. Riu de uma piada que não
tinha piada alguma.
Ela fez o impossível. Trabalhou a tarde toda e noite fora. Enquanto as estrelas caíam e a
lua descia no horizonte alado de um mar que ficava à distância do esquecimento.
Ignorou o mundo. Ignorou a rua, onde ocasionalmente passava gente, falando alto
ou uma ambulância com o tom de aviso.
Ela fez o impossível. Fechou os livros e subiu as escadas e
caiu na cama. Fechou os olhos, despediu-se da dor e da alma, com um "boa
noite" ternurento. Sabia melhor do que ninguém que diria "bom
dia" alguns minutos depois.
Ela fez o impossível. Muitas vezes. Por tempo demais. Mas
era insuportável continuar. Então ela esboçou um sorriso de lágrimas nos olhos
e pensou nele, enquanto a solidão pesava e a saudade lhe acarinhava o rosto que
humedecia. Pensou nele e nos motivos que tinham feito da sua vida um quase-nada
que todos invejavam. Pensou nele e deixou escapar, no tom de uma oração, um
"amo-te" gaguejado e entrecortado no choro.
A insónia chegou, por fim. Lavou-lhe o cansaço com as
lágrimas e não a deixou dormir até chegar a alvorada. Então, ela fez o
impossível: acordou de um sono por dormir na madrugada pardacenta de uma noite
que ainda não vira o fim. E começou mais uma jornada de impossibilidades.
Lutando contra os pensamentos e contra o tempo e contra a vida.
Marina Ferraz
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Sempre assim... Vida de muitos! Adorei o texo, parabéns pelo blog. Bjs
ResponderEliminarGostei, muito bem escrito, escorreito, mesmo...parabéns...é vida de alguns, sim.
ResponderEliminarNossa... qtas vezes vivems nas impossibilidades da vida... bjus
ResponderEliminarNossa tudo a ver comigo =/
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