terça-feira, 14 de setembro de 2021

FilhXs da mãe

 



A minha mãe diz que teve três filhos. Mas não teve. Teve um filho. E duas filhas. Talvez, num primeiro momento, pareça que isto faz pouca diferença. Deveria fazer pouca diferença. Mas não é esse o mundo que temos.

 

 

Da burca à Playboy, passando pelo assédio, pela violação, pelas discussões intermináveis sobre a prostituição, pela objetificação, pela invisibilidade, pelas fontes oficiais, pela aniquilação histórica, pela condescendência, o gaslight, o mansplaining e saltitando, ainda, pelos patamares de “uma menina não faz isso”, que se consubstancia mais tarde no “ela comporta-se como um homem”.

 

Ser mulher é ser peça no jogo onde todas as regras foram feitas por homens e todas as peças são movidas por homens. E importa pouco que existam tantas formas de se ser mulher quanto o número de mulheres no mundo. Porque se reduz facilmente o universo do feminino às púdicas e às putas. Às que são para comer e às que são sapatonas. Às que são dóceis e às que são cabras.

 

É sistémico!

 

Num mundo onde ser homem é ser livre, há mulheres que escolhem ser homens. Nas crónicas, chamam-lhes frequentemente “mulheres de sucesso” ou o “rosto feminino das empresas”. O género refere-se, ressalta-se, salienta-se, sublinha-se... mulher... feminino... E elogia-se a referência. Sem notar. Sem perceber. Sem que se compreenda que, no final da linha, é para cumprir as cotas. Para dizer que se fez. Para que a publicação não possa ser acusada do machismo e misoginia, varrendo-as para debaixo dos tapetes de uma opinião pública mansa. Mas quem é que leu, alguma vez, “o rosto masculino das empresas”?

 

A pouco e pouco, é com estas estratégias que nos fazem acreditar que o mundo está melhor. Mais equitativo. Fazem-nos acreditar que o empoderamento feminino se faz, de leito em leito, de posto de chefia em posto de chefia. Juntamente com os tetos de vidro, varrem-se os cacos que constituem a desigualdade salarial para debaixo de outros tapetes. Aqueles que não são mágicos nem voam, mas que carregam a “magia” dos preconceitos de cada conto de fadas. E escondem-se estatísticas que nos mostram a disparidade nos cargos de chefia nas firmas... para evitar transtornos. E chama-se sempre a “senhora da limpeza” e o “advogado”, ainda que o contínuo seja um homem e o advogado use saias.

 

 

A minha mãe diz que teve três filhos.

 

 

Claro que, do meu irmão – homem – não posso dizer que se cole às lógicas da misoginia. A minha mãe criou-nos a todos para fazermos a cama e cozinharmos. Para limparmos a casa e lutarmos pelos sonhos. Criou três feministas. Mas... na adolescência, isto valeria ao meu irmão uma parede da cidade pintada, acusando-o de ser homossexual... Não é. Não é, porque não calhou ser. Se fosse, a minha mãe ainda o amaria com igual intensidade. Assim como eu. Assim como a minha irmã. Só que – feminista, em essência, – mesmo não sendo, disseram que era. O mundo é assim!

 

Por mais que o meu irmão represente – ou assim acho – algo de bom no mundo, quando a minha mãe diz que teve três filhos, eu penso: Desculpem. Não teve. Teve duas filhas e um filho. Não foi dentro das paredes que isto nos minou liberdades. A rua, no entanto, não é tão branda.

 

Ela teve um filho. E duas filhas.

 

Uma delas sou eu. Alguém que cresceu protegida pelos braços e ideias de uma mãe com valores incríveis. Que criou três feministas. Mas que o fez num mundo essencialmente machista e misógino que dificulta a vida a qualquer um que não integre a norma estreita (e dissimulada) de um status quo que perpetua a hegemonia masculina.

 

No meio de tudo isto, quando me sento com os meus irmãos, compreendo que somos todos filhxs da mãe. Estamos lá uns para os outros, cientes da necessidade de um equilíbrio que não existe... defendendo ideias muito semelhantes sobre o que a equidade deve ser.

 

 

A minha mãe diz que teve três filhos. Não teve. Teve duas filhas. E um filho. ´

 

Apesar de ser uma mãe incrível, que nos ensinou (e ensina todos os dias) a ser mais do que o espelho de um mundo pobre e podre, isso não pode fechar os olhos à realidade que se faz fora do colo e do embalo dos seus braços resilientes. E essa realidade diz-nos: ser mulher ainda faz diferença. E fará diferença enquanto as mulheres tiverem medo de andar sozinhas e de sair à rua durante a noite; enquanto as mulheres tiverem de se esforçar a dobrar para atingir uma posição de poder ou para receber uma remuneração justa; enquanto houver, no mundo, países que não permitem, sequer, que mulher aceda à educação e ao mercado de trabalho, fazendo delas pouco mais do que objetos para uso masculino.

 

Sobre nós? As filhas e o filho da minha mãe? Bem... somos muito diferentes uns dos outros... desenquadrados – e ainda bem!

 

Nenhum de nós nasceu no mundo certo! Não temos raiz, nem lugar onde encaixemos. A sorte que nos resta é que temos sempre – e sabemos que temos – o abraço uns dos outros... e o colo desta mulher que diz, referindo-se à sua maior concretização, que teve três filhos.

 

 

(mas não teve! Teve duas filhas e um filho...)


Marina Ferraz





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