quarta-feira, 5 de abril de 2023

Dos teus olhos

 


Ele diz que gosta da minha poesia. Mas detesta poesia moderna. Considera-a, como o seu pai antes dele, “prosa fragmentada e empilhada”. Sentados à mesa, e com um livro maravilhoso ostentando a encadernação voltada para a luz amarela do café, ele confessa: “não gosto deste tipo de poesia”. Sorrio. Lembro-me das almas que compararam aqueles poemas aos meus, tão pequeninos ao lado da maravilha da poesia da autora de renome cujo nome ornamenta o topo da capa. “Não é tão diferente da minha!”, observo. Ele sorri. “Eu acho diferente. Mas talvez sejam os meus olhos...”.

 

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Os teus olhos choraram pela primeira vez a 5 de Abril de 1950. Desse primeiro choro fizeram vitória. Vida conquistada, partiste em busca dos poemas. Até chegarmos aqui. Com um livro sobre a mesa do café e as tuas palavras sobre os meus poemas e o teu olhar enviesado.

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Gosto tanto deles que, durante uma vida, quis que me vissem. Assim. Como sinto que agora veem. Adulta e senhora de mim. Artista. Penso que, durante muito tempo, olhaste para mim e viste o reflexo do sonho que me sonhaste. Penso que, talvez por medo de me veres cruzar caminhos de espinho, tenhas lutado um pouquinho contra a menina-recheada-de-sonhos. Mas eu cresci, pai. Nos teus olhos. E gosto deles a olharem para a pessoa que me tornei, reconhecendo-me.

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Há um brilhozinho neles quando eu chego. Questiono-me se é porque sabes que, além de todas as diferenças, ainda nos sobram traços comuns. Por exemplo... já notaste que duas das palavras que dizemos mais são “não” e “mas”? E que damos um saltinho em todos os degraus? Que contamos os degraus? E já reparaste que trazemos pormenores da História e da Física que não interessam a ninguém (e chateiam meio mundo!) em todas as conversas? Temos sempre a piada inconveniente certa... no momento errado. E dizemos a piada à mesma... Frequentemente olhando-nos a seguir, para, ao menos, sermos dois a rir. Gostamos dos grandes poetas e músicos. Da conversa com estranhos ocasionais. De nos metermos com os empregados dos restaurante... Até gostamos de achar que somos muito diferentes um do outro, vê lá...

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Os teus olhos marejam ocasionalmente e não gostas disso. Mas eu gosto. Lembra-me o que aconteceu no começo da história de ti, quando choraste pela primeira vez. Lembra-me que nasceste. Gosto. Porque te sei humano. Dizes que é fragilidade, mas eu acho que é força. Aprendi com o tempo e com todos os “eu quero lá saber que queiram lá saber de mim”, que querer saber ao ponto da emoção é, afinal, muito bonito! E é por isso que quando me dizes: “Talvez sejam os meus olhos”, eu olho nos teus olhos.      Verdes.      Os meus, apetece-me dizer-te, também ficam verdes quando choro ou apanho demasiado sol.      Mas esqueço-me de to dizer, na busca pelo meu reflexo. Só que, quando olho nos teus olhos, não me encontro. Em vez disso, encontro poesia...

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Aninho-me na menina que fui. Não quero escrever-te dessa “prosa fragmentada e empilhada”, da qual dizes não gostar. Escrevo antes isto. Prosa-prosa. Demasiadamente pontuada e fragmentada. Talvez.

 

Podia ser um poema, todo tradicional e rimado, com a métrica contada, mas não é. É uma prosa sobre os teus olhos, dos quais eu gosto tanto. E, sentados à mesa, e com um livro maravilhoso ostentando a encadernação voltada para a luz amarela do café, confessas-me: “não gosto deste tipo de poesia”. Duas trocas de conversa e dizes-me que gostas da minha. Mas que talvez sejam os teus olhos. Porra! Eu quero lá saber se são os teus olhos! Gostas da minha poesia!

 

 Subo para os teus ombros para ser a criança que fui, segurando-me no teu pescoço. Repito que gosto de ti... do teu tamanho, ora! Ficas a pensar se gosto ou do que gosto ou do porque gosto... mas nada disso importa.

 

Importa que gosto. E o que gosto mais, pai, é dos teus olhos... dos mesmos que choraram além-mar. Pela primeira vez. A 5 de Abril de 1950.

 

Para um dia me dizeres que os teus olhos dão rima e métrica aos meus poemas desalinhados. Para me dizeres que tens neles um filtro especial para mim.


    Marina Ferraz




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2 comentários:

  1. Magnífica homenagem ao teu pai... de coração para coração mesmo, com as palavras a brotar à flor da pele sem refúgios... só com sentimentos. Conhecendo o que conheço de vocês à verdade em tudo e muito... muito afecto. Mais um texto fabuloso com que nos brindas sempre. Parabéns a ti por seres só coração e escreveres com ele. Beijinhos

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  2. Anónimo23:39

    Mais um belo texto que deixa qualquer pai com o tal brilho nos olhos. Pode até nem gostar da tal poesia moderna... LINDO!

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