quarta-feira, 12 de abril de 2023

Gente de Abril

 




Barragem da Aguieira

24 de Abril de 1976

 

Ele deu sombra aos olhos para olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se que tenha dito. Ali à frente, aquele pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?

 

E imagina-se que ela. Suavemente. Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro. A Natureza é muito bonita. São as coisas mais bonitas do mundo. A Natureza, a Música e as Crianças...

 

E ele tinha apontado porque tinha mãos.

E ela tinha olhado porque tinha olhos.

E tinham falado porque tinham voz.

 

O pássaro que voava chamava-se Liberdade.

Eles não tinham aprendido a celebrar a palavra Liberdade.

 

Então, celebravam os pássaros.

 

 

Sintra

11 de Abril de 2023

 

Os meus avós não foram gente de Abril. Mas foram. Mesmo sem ser. Educados em famílias convencionais e que facilmente se tinham embrenhado na ideologia vigente, ambos tinham crescido sem ouvir falar de política e sem precisarem de falar dela, aceitando a realidade como a única forma de realidade, sem perceberem plenamente que aceitá-la era a estratégia para não morrer nas suas cordas de forca. Ambos tinham crescido nas normas e jeitos de uma Mocidade Portuguesa. Ele passou de moço a homem de família e ela de mulher a mãe da nova raça.

 

Quando veio Abril, a minha avó teve medo e o meu avô não agiu. Temeram mais os dias que se seguiram, com gentes apontando espingardas aos transeuntes que caminhavam para o trabalho, do que tinham temido os dias da censura e do exílio.

 

Os meus avós não foram defensores de Abril. Pelo contrário. Defendiam um Salazar em cada junta de freguesia e – piada privada nossa – cheguei a oferecer meia dúzia de espátulas, para eles terem salazares suficientes na cozinha. Que lhes bastassem aqueles, pensava eu...

 

Os meus avós, que não foram gente de Abril, mas criaram-me para o ser. Porque os meus avós, presos nas suas ideologias, tinham as palavras antigas, mas o pensamento novo. A palavra reservada, mas a atitude certa. Os meus avós criaram-me para que eu fosse justa e livre, para que eu contestasse e lutasse. Para que eu me defendesse e desconfiasse de todos os conceitos fechados. Os meus avós – que não foram defensores de Abril – criaram-me para ser o Abril que não tinham criado.

 

Penso neles, à medida que olho a agenda. Para mim todos os dias são a véspera do Abril que ainda não foi. Vou-me munindo de palavras e exércitos. Vou carregando as armas com poemas. Vou chamando corpos para entoarem em gesto o que não pode ser disparado com as palavras.

 

Barragem da Aguieira

24 de Abril de 1976

 

Ele deu sombra aos olhos para olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se que tenha dito. Ali à frente, aquele pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?

E imagina-se que ela. Suavemente. Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro. A Natureza é muito bonita. São as coisas mais bonitas do mundo. A Natureza, a Música e as Crianças... e um dia, a nossa Cilita vai ter uma filha que vai ser assim.

 

Sintra

11 de Abril de 2023

 

Abril veio com flores.

Abril veio com fotos.

 

Agarro junto ao peito a minha gente. Lembro-lhes as palavras e os gestos. Escolho olhar os gestos como se fossem palavras. Tão retos, tão orientados na direção oposta das palavras que tinham plantado no jardim que devia ser dos cravos.

 

Não posso dar-lhes cravos vermelhos. O meu avô não gostava de cravos. A minha avó não gostava de vermelho.

 

Dou-lhes pensamentos e sussurro: obrigada por me plantarem Abril nas veias.

 

Eles são símbolo e motor desse exército que construo. Levo-os ao peito onde vou. Esta é a gente que me fez gente de Abril.

 

E grito Abril. Até ficar afónica. Literalmente.

 

 

Barragem da Aguieira

24 de Abril de 1976

 

Eu voava naquele céu.

 

Ele deu sombra aos olhos para olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se que tenha dito. Ali à frente, aquele pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?

 

E imagina-se que ela. Suavemente. Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro.

 

Eu voava naquele céu.

 

Imagino que tenha pensado. É aqui que quero nascer, na próxima vida.

 

 

Coimbra

23 de Junho de 1989

 

Nasci. Ali. Junto a eles. Neta deles.

 

Não me cortaram as asas.

 

É Abril e vou.

 

É Abril e voo.


Marina Ferraz











Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu novo livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com

1 comentário:

  1. Mais um texto incrível e uma homenagem bonita aos teus avós..
    Que os pássaros possam sempre voar... que o o seu voo possa ser sempre liberdade em promessa e alma...
    Que os sonhos nunca possam ser cortados nem riscados a lápis azul...
    E a liberdade seja o eterno devir concreto porque se pugna...
    Que haja razões para gritar 25 de Abril sempre... enquanto como humanos tivermos a capacidade de ser alma e essência.

    ResponderEliminar