Barragem da Aguieira
24 de Abril de 1976
Ele deu sombra aos olhos para
olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se
que tenha dito. Ali à frente, aquele
pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?
E imagina-se que ela. Suavemente.
Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro. A Natureza é muito bonita. São
as coisas mais bonitas do mundo. A Natureza, a Música e as Crianças...
E ele tinha apontado porque tinha mãos.
E ela tinha olhado porque tinha olhos.
E tinham falado porque tinham voz.
O pássaro que voava chamava-se Liberdade.
Eles não tinham aprendido a celebrar a palavra Liberdade.
Então, celebravam os pássaros.
Sintra
11 de Abril de 2023
Os meus avós não foram gente de Abril. Mas foram. Mesmo sem ser. Educados em famílias convencionais e que facilmente se tinham embrenhado na ideologia vigente, ambos tinham crescido sem ouvir falar de política e sem precisarem de falar dela, aceitando a realidade como a única forma de realidade, sem perceberem plenamente que aceitá-la era a estratégia para não morrer nas suas cordas de forca. Ambos tinham crescido nas normas e jeitos de uma Mocidade Portuguesa. Ele passou de moço a homem de família e ela de mulher a mãe da nova raça.
Quando veio Abril, a minha avó teve medo e o meu avô não agiu. Temeram mais os dias que se seguiram, com gentes apontando espingardas aos transeuntes que caminhavam para o trabalho, do que tinham temido os dias da censura e do exílio.
Os meus avós não foram defensores
de Abril. Pelo contrário. Defendiam um Salazar em cada junta de freguesia e –
piada privada nossa – cheguei a oferecer meia dúzia de espátulas, para eles terem salazares suficientes na cozinha. Que
lhes bastassem aqueles,
pensava eu...
Os meus avós, que não foram gente de Abril, mas criaram-me para o ser.
Porque os meus avós, presos nas suas ideologias, tinham as palavras antigas,
mas o pensamento novo. A palavra reservada, mas a atitude certa. Os meus avós
criaram-me para que eu fosse justa e livre, para que eu contestasse e lutasse.
Para que eu me defendesse e desconfiasse de todos os conceitos fechados. Os
meus avós – que não foram defensores de Abril – criaram-me para ser o Abril que
não tinham criado.
Penso neles, à medida que olho a agenda. Para mim todos os dias são a
véspera do Abril que ainda não foi. Vou-me munindo de palavras e exércitos. Vou
carregando as armas com poemas. Vou chamando corpos para entoarem em gesto o
que não pode ser disparado com as palavras.
Barragem da Aguieira
24 de Abril de 1976
Ele deu sombra aos olhos para
olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se
que tenha dito. Ali à frente, aquele
pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?
E imagina-se que ela. Suavemente.
Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro. A Natureza é muito bonita. São
as coisas mais bonitas do mundo. A Natureza, a Música e as Crianças... e um
dia, a nossa Cilita vai ter uma filha que vai ser assim.
Sintra
11 de Abril de 2023
Abril veio com flores.
Abril veio com fotos.
Agarro junto ao peito a minha gente. Lembro-lhes as palavras e os gestos. Escolho olhar os gestos como se fossem palavras. Tão retos, tão orientados na direção oposta das palavras que tinham plantado no jardim que devia ser dos cravos.
Não posso dar-lhes cravos vermelhos. O meu avô não gostava de cravos. A minha avó não gostava de vermelho.
Dou-lhes pensamentos e sussurro: obrigada por me plantarem Abril nas veias.
Eles são símbolo e motor desse exército que construo. Levo-os ao peito onde vou. Esta é a gente que me fez gente de Abril.
E grito Abril. Até ficar afónica. Literalmente.
Barragem da Aguieira
24 de Abril de 1976
Eu voava naquele céu.
Ele deu sombra aos olhos para
olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se
que tenha dito. Ali à frente, aquele
pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?
E imagina-se que ela. Suavemente.
Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro.
Eu voava naquele céu.
Imagino que tenha pensado. É aqui que quero nascer, na próxima vida.
Coimbra
23 de Junho de 1989
Nasci. Ali. Junto a eles. Neta deles.
Não me cortaram as asas.
É Abril e vou.
É Abril e voo.
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Mais um texto incrível e uma homenagem bonita aos teus avós..
ResponderEliminarQue os pássaros possam sempre voar... que o o seu voo possa ser sempre liberdade em promessa e alma...
Que os sonhos nunca possam ser cortados nem riscados a lápis azul...
E a liberdade seja o eterno devir concreto porque se pugna...
Que haja razões para gritar 25 de Abril sempre... enquanto como humanos tivermos a capacidade de ser alma e essência.