Ela começou, aos poucos, a sentir. Era uma dormência,
inconstante e cheia de necessidades, pendurada no canto do olho, como se fosse
lágrima. Mas não era. E ela sorria. Às vezes, enquanto esfregava a banca da
cozinha, tentava remover a camada de limpeza que ficava por baixo da camada de
gordura. E tentava corroer a pedra, com uma energia tresloucada. Passando o
pano de um lado para o outro, imaginava que corria distâncias impossíveis, sem
destino nem obrigação. E, pendurando-o no fio do avental, anuía para si mesma e
para a pedra intacta e imaculada. Foi aí, por entre a tarefa. Aos poucos. Foi
aí que ela começou a sentir. As intermitências. Mas, porque não conhecia a
sensação, ela julgou que era apenas mais uma partida da sua cabeça. E disse,
aos botões da sua solidão: “deixa-te disso, menina”. E obedeceu a si mesma.
Estava habituada. A obedecer.
Ela começou, aos poucos, a descobrir. Era um espelho de duas
faces, que lhe reflectia as expressões mais infelizes e lhe ampliava os gestos
mais horríveis. Dos olhos, feiíssimos, fazia dois poços pestilentos, dos quais
saiam apenas as vulgares pestanas. Dos lábios, disformes, fazia fossas
recheadas de dentes tortos. E, se acaso ela sorria a esse espelho, ele
devolvia-lhe um grito e abria mais uma fissura, bem a meio, cruzando com todas
as outras. E ela, que não era nada de se olhar ao espelho, aventurou-se a
aproximar-se dele e a tocar-lhe. Sentindo, mais do que nunca, a intermitência.
Essa que, tendo nascido junto à banca da cozinha, parecia agora furar-lhe as
entranhas e roçar-lhe a pele.
Ela começou, aos poucos, a aceitar. Era uma novidade
daquelas que se estampam nas páginas mais importantes dos jornais gratuitos do
metropolitano. A aceitação. Feia como o seu rosto e imaculada como a sua banca.
Como se o feio e o limpo estivessem sempre no mesmo prato e fossem servidos
sempre à mesma hora. Ela era alheia à feiura e à limpeza. Ainda mais à
aceitação. A verdade era esta: por mais evidente que fosse, por mais que
sentisse e confrontasse a realidade do espelho, ela não sabia que estava a
aceitá-la. Acreditava, por alguma razão obscura, que estava a fazer escolhas e
a tomar opções. Dona do seu nariz torto e abatatado. Mas não. Sentindo o
formigueiro causado pela intermitência, ela estava simplesmente no caminho da
aceitação. E esta tinha raízes que lhe cresciam dentro da pele, feito veias.
Nelas não corria o sangue que lhe dava a vida mas o veneno que se entranharia
no peito e a tornaria finalmente senhora de si.
Ela começou, aos poucos, a odiar as paredes da casa. Não só
as paredes. Também os tetos e o chão. E as pessoas que viviam sob aquele teto e
aquele chão, na guarida daquelas paredes. E o suposto Deus que abençoava as
gentes e as casas. E tudo o resto. Sentir a intermitência, a crescer de dia
para dia, como um feto crescendo dentro do peito, rasgando-lhe a vontade de
viver. Estava grávida de emoções e não conseguia pari-las. Era uma dor que
gerava no silêncio, com um sorriso parcelado no rosto, onde ainda se pendurava
a dormência, feito lágrima. E pensou muitas coisas para si. Muitas coisas que
não disse porque sabia que eram injustas e que, cedo ou tarde – ou,
provavelmente, em ambas as circunstâncias – se arrependeria das palavras.
Ela começou, aos poucos, a morrer. Não da intermitência mas
do silêncio. Era a vida. E, perante a imagem da morte, continuou a preferir
essa candura. A do silêncio. Era um sofrimento solitariamente constante.
Num momento de fraqueza, escondeu-se debaixo das mantas
empoeiradas das memórias do passado. Escondeu o rosto. E pensaria o mundo:
pudera que se esconda, posto que é horrenda a sua imagem. Mas não. Não era
feia. Nunca tinha sido feia. Não era o espelho mas o seu olhar sobre o espelho
que lhe distorcia a imagem. Não era falta de beleza mas ódio que, feito suor,
se pregava à pele numa camada fina e epidémica. Toda cheia de ódio pela sua
imagem e pelo contraste entre os seus sentidos e a limpeza imaculada dos
espaços, ela fazia dos dias o inferno e das horas a tortura. A sua lealdade para
consigo mesma era intermitente e desvanecia, à medida que o compromisso com a
morte ia estabelecendo os pontos-chave do contrato que prometera assinar.
Ela começou, aos poucos, a admiti-lo: não queria viver. E o
coração, que era o único que a ouvia nos silêncios, soube-o. Como uma luz de
sala, acabada de mudar, trabalhava bem mas gerava uma ocasional intermitência
fantasmagórica. Um dia parou por alguns minutos. Poderia ter voltado a bater.
Mas, no negrume da falha, ela que nunca sentia nada além da intermitência,
sentiu. Paz. Tanta paz. E o coração adormeceu com um sorriso.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Sigam também o meu instagram, aqui.
Preciso começar dizendo que este texto é único,não só por suas palavras magníficas,mas pela ideia em si que o faz transbordar da página.É uma tristeza e uma ânsia pela descoberta desse sentimento,dessa falta de entendimento de si mesmo e tudo isso faz nós mesmos nos enchermos e dúvidas e pensarmos se isso está neste exato momento ocorrendo a nossa volta,ou,então,dentro de nós.
ResponderEliminarMeu trecho preferido é "Sentindo o formigueiro causado pela intermitência, ela estava simplesmente no caminho da aceitação. E esta tinha raízes que lhe cresciam dentro da pele, feito veias. Nelas não corria o sangue que lhe dava a vida mas o veneno que se entranharia no peito e a tornaria finalmente senhora de si."
Parabéns querida :D
Beijinhos,Jenny ^.^