Tudo me dói menos a dor. A dor, em mim, tinha-se esquecido
de como era. Doer. Tirando férias do meu peito, ela pouco fez além de
contemplar a possibilidade. Esta possibilidade. Mas, sem acreditar muito nela,
depressa se desfez, também, do pensamento. Então, enquanto tudo em mim era
prazer (ainda que angustiado), felicidade (ainda que entrecortada) e sonho
(ainda que acordado), a dor fazia uma espécie de tricô e esquecia-se.
Esquecia-se de doer. E era miseravelmente infeliz na sua narrativa enfadonha.
Tudo me dói menos a dor. Há recantos do meu corpo que me
doem e ligamentos da alma que padecem, estremecendo medos com o frio e com o
tempo. Deito-me na cama e o teto é tela de um filme. Dancemos, diz ela. Não sei
dançar, diz ele. E depois beijam-se. Fecho os olhos. E doem-me os olhos que
fecho. Doem as imagens que dançam. E as que não sabem dançar. À medida que se
movem entre as conexões infindáveis de um cérebro que não desliga e que, por
isso, também dói. O coração, atormentando-se pela ideia de um tango que se faz
a solo, falha um batimento e tenta arritmicamente recuperá-lo durante algumas
horas. E, nesse processo, também lateja, obrigando as respirações profundas a
lembrar-me de que me dói o ar que inalo e o que exalo. Inspiro. Expiro.
Suspiro. E dói. Tudo me dói. Menos a dor.
Sem nada que traga recordações nas paredes da casa, eu vou
descobrindo que a casa é recordação. E, em vez de a rasgar, dou por mim
despida, debaixo da água corrente do banho, a tentar lavar da pele o toque pelo
qual anseio. A tentar arrancar dos lábios os beijos que ainda desejo. A tentar
proibir-me de fazer amor com a memória dos corpos dados debaixo de lençóis de desejo.
E há dores nestas ansiedades. Como se a água fosse espinhos. E a cama fosse
abismo. E o que fica entre o corpo e a alma fosse um rio de lava ardente,
deixando golpes esfolados por onde passa. Arde. Tanto que o tempo pára nesse
azedume tolhido de pesar e de sofrimento. Somo um mais um e descubro que dá um.
Dói-me a sanidade. Dói-me a loucura. Dói.
Tudo me dói menos a dor. Nos pés nus, descubro que me doem
os passos. No aroma do incenso que queima, descubro que me dói a fé. No reflexo
que me devolve olhares complacentes descubro que me dói a auto-comiseração. E
dói-me também a mão depois de reduzir a cacos o espelho, para que não olhe mais
para mim, lamentando a triste sorte do meu triste eu. Subitamente, há gotas
rubras no chão. Descubro que me dói o sangue. Rubis tristes de vida, ainda
quentes e salutares, agarrando-me à terra dos vivos, com grilhetas. A vida
também me dói.
E, por entre todo este universo de mim que dói
confinadamente no meu pequeno eu, eu sei que tudo dói e sei, porque o sinto,
que a dor não. A dor, em mim, tinha-se esquecido de como era. Doer. E era
miseravelmente infeliz na sua narrativa enfadonha. Mas, agora – agora que tudo
me dói – a dor não. A dor lembrou-se. De como era. Doer. E, pela primeira vez
em muito tempo, ainda que tudo o resto doa, a dor está feliz.
*Imagem retirada da Internet
Bons textos por aqui!
ResponderEliminarGreat post!
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xoxo Jacqueline
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