terça-feira, 7 de maio de 2024

O que se quer agora

 

Imagem gerada por I.A.

O que se quer agora – dizem – é uma família convencional. Triste para mim, que partilho a vida com um gato. Pior. Uma gata. Pior. Preta. É um tipo de relacionamento inter-espécie, entre dois seres do mesmo sexo, com diferentes tonalidades de pele-pêlo, onde apesar de existirem dinâmicas confessamente assexuais, se criam hábitos como dormir juntas e em conchinha, num partilhar desavergonhado de afetos.

 

Mas o que se quer agora – dizem – é uma família convencional. Está a perder-se – dizem – a tradicionalidade de merda que estipularam, com normas impossíveis, para que a sociedade cole um selo de aprovação na vida dos outros. Quase se ouve a vozinha, de todas as vezes que um homem – de bom emprego e força física, que descarrega as frustrações na esposa ao chegar a casa – se casa com uma mulher – ovelhinha recatada de rua e rameira no quarto, dona de casa e boa parideira, idoneamente confinada à tarefa doméstica e à permissividade – têm um rol de filhos – educados para o amor à pátria, eles para serem soldados e elas para serem servis. Essa vozinha diz: “Eu sou o capitalismo, e aprovo esta mensagem”. Também poderia dizer: “Eu sou a tirania, e aprovo esta mensagem”. Ou ainda: “eu sou parvo, e aprovo esta mensagem”. Na falta de voz que soe, fica quem acredite e reescreva com o mesmo tom de azul toda a narrativa de uma vida perdida para se ser o que os outros acham que se deve ser.

 

O que se quer agora – dizem – é uma família convencional. Que ser dona de casa ainda está mais fácil do que ser dona de uma. Ideia parva que meteram na cabeça das mulheres do século XXI! Afinal, sabemos todos que as casas são para turistas. Eventualmente, a muito custo, para homens cujo arcaboiço chega para suportar dois trabalhos. Mas isto não é nada fácil para quem ainda precisa da energia para cumprir o seu papel de homem-macho, que chega a casa e treina boxe na mulher e nos filhos para destacar o seu papel de cabeça de casal.

 

Curiosamente, num tempo em que se retoma a narrativa da família tradicional, porque é o que Deus quer e o que o Estado recomenda, eu sou muitas vezes obrigada a concordar que as minhas escolhas de viver sozinha com a gata não são as mais adaptadas aos tempos. Na verdade, sou obrigada a pensar que, para uma grande adaptação à realidade atual, também a família convencional poderá ser um conceito impossível. Hoje em dia, com o preço das rendas, relações poliamorosas deveriam estar na calha para todos, já que só um ou dois dificilmente conseguirão pagá-las, principalmente se viverem nos principais núcleos urbanos. Já não é uma questão de quem beija quem, é uma questão de quem paga o quê. Amores, dividimos a renda. Um paga a luz, o outro paga o gás, o outro paga a água, o outro paga a net, o outro paga o telemóvel, e por aí adiante, até sermos todos pobres, como convém a quem cobra…

  

O que se quer agora – dizem – é uma família convencional. Triste para mim, que partilho a vida com uma gata e sou feliz com ela. Talvez, no fundo, os mais tradicionais até não desaprovem muito. Porque, se virmos bem, ela é como o homem da casa. Normalmente limpo, cozinho, dou atenção… e ela deitada no sofá sem fazer nenhum. E arranha, às vezes, se achar que a minha conduta não se adequa à vontade dela. Ainda sou eu que acabo a pedir desculpa… Sim, talvez aprovassem esta vida. Se não vissem o imenso amor que nos une.

 

Deito-me. Ela entra na cama, lençóis adentro. Dá uma volta sobre si mesma. Espreguiça-se. Encosta as costas à minha barriga. Dá-me um beijo de boa noite com a língua rugosa na mão. Adormecemos.

 

O que se quer agora – dizem – é uma família convencional. E o que eu quero é que eles enfiem a convenção no buraquinho da uretra, que é para doer mais e não ser no sítio onde certamente até gostam. Que para defender tanta estupidez, é preciso um elevado índice de ressabiamento.


Marina Ferraz




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