Venho, por este meio, pedir autorização para ser eu própria.
Declaro que li os termos regulamentados pela sociedade e que
conheço, de cor, as alíneas formatadas que definem os padrões desejáveis para
uma correcta inserção e integração na amálgama semi-homogénea das gentes que
permeiam as ruas. Não assino nem subscrevo. Mas declaro que li e compreendo a
normativa, juntamente com todas as suas variantes, interpretações e lacunas. A
lacuna é, claro, a palavra vaga (e, acredito eu, vazia) liberdade. É uma
liberdade relativa e integrada nos termos. Tão integrada nos termos que exclui
facilmente raças, ideologias, religiões, tons de pele, estilos de corpo,
estilos de roupa, tipos de beleza, opções sexuais e outros. Apodero-me, aqui,
da lacuna e reclamo o meu direito à liberdade de pedir, ainda que sabendo as
consequências inerentes ao requerido, para que me permitam viver a vida sendo
simplesmente quem sou.
Na ausência de argumentos que se enquadrem nas regras
estipuladas, tentarei simplesmente explanar as razões que me fazem desejar,
numa primeira instância, e solicitar, numa segunda, a emancipação social.
Primeiramente, acontece que, tendo passado grande parte da
minha vida tentando responder de forma equilibrada e respeitadora às regras,
compreendi que, independentemente do esforço empenhado na tarefa, esta não
parece surtir resultados. Apesar das muitas estratégias desenvolvidas e postas
em prática, nunca, em nenhum dos meios que frequentei, obtive das pessoas um olhar
que não remetesse para a diferença óbvia entre o que elas eram e o que eu
parecia ser. Partindo do estimulo inevitável - eu a ser eu - chegava a
resposta, naqueles olhares, com variantes estabelecidas entre o nojo, o ódio, a
incompreensão, a comiseração e a semi-aceitação. Os olhares resultavam em
atitudes. As atitudes despoletavam a distância. O meu lugar foi construído,
portanto, a muitas mãos, todas elas selando, pedra a pedra, a muralha que
cercou o meu espaço seguro, no qual, pelas referidas razões, não existe vivalma
além de mim.
Em segundo lugar, como percebi ao longo da minha permanência
no isolamento voluntário exercido, as normas estipuladas e sob as quais quase
todas as pessoas assinam tendem a criar, nos indivíduos, uma visão redutora e
complacente, cheia de opiniões-cliché e vazia de espírito crítico. Por exemplo:
toda a gente sabe que existe um universo sem fim mas todos vivem como se não
houvesse mundo além deles próprios. A maioria das pessoas tem uma religião, a
mesma maioria não sabe explicar a própria crença. As pessoas têm necessidades
desnecessárias e desprezo por necessidades básicas. Como estas, outras. Na
minha solitária prisão anti-social descobri que, na maioria dos temas, tenho
mais perguntas do que respostas. As perguntas incomodam as outras pessoas.
Roubam-lhes a paz. A liberdade, talvez. As perguntas fazem de mim criminosa nos
termos regulamentados.
Por fim, a arte. A arte que me fez monstro. A arte que me
fez bicho. A arte que confirmou, aos olhos etéreos da sociedade, que a loucura
flamejante dos meus olhos tinha razão de ser. Reclamo o direito de qualquer
artista viver a sua liberdade, longe das normas contratuais aplicáveis aos
restantes indivíduos de uma sociedade. Reclamo-o porque, no estatuto inferior
que ocupam; na camada decadente para a qual são varridos, são os artistas que
se erguem para mostrar o que as pessoas não sabem, o que não vêem, o que não
ouvem. São eles que carregam a história, navegando em mares de preconceito,
levando de porto em porto a ilusão de um mundo melhor.
Não são argumentos que se enquadrem nas normas estipuladas
pelo regulamento que molda a sociedade e a torna coesa, habitável, estável e,
supostamente, perfeita. Mas são os únicos argumentos possíveis no centro da
liberdade idealizada que, infelizmente, não saiu do papel.
Declaro que li e compreendo os termos e as condições
inerentes à vida no centro deste mundinho no qual não sei se quero estar. Não
assino. Não antes de me roubaram a vontade. E a sanidade. E a alma. E a vida. Em
nome da liberdade.
Venho, por este meio, pedir autorização para ser eu própria.
Mas declaro que o serei... com ou sem autorização.
Marina Ferraz
Nesse mundo tão inconstante não há pedido igual que seja aceito,até porque ter coragem de ser quem és leva a uma vastidão de julgamentos e críticas,mas acredito que devemos buscar sim nossa liberdade,não a que é dita pela sociedade,porque é outra,uma idealizada que não existe,mas a liberdade de cultivarmos nossos próprios pensamentos,de sermos quem somos não importa onde nem quando.
ResponderEliminarAmeii o texto <3
Beijinhos Jenny ^.^
Olá,muito bom seu texto,achei de um intensidade sem igual,li uma vez que não somos livres enquanto ainda temos que seguir regras e acho que isso é mais ou menos como o seu texto,precisa-se requerir à sociedade um alvará para ser como é,e por isso é que não se tem liberdade de ser você mesmo.
ResponderEliminarGostei bastante,por favor não pare de escrever
Abraços de Tocantins!!