terça-feira, 5 de janeiro de 2021

A conversa

 

Fotografia de TanteTati


Sentei o meu coração no degrau. Obstinado e rebelde, todo cheio de frases feitas, anarquistas e insubordinadas, ele agastou-se, enterrando a face nas mãos e começou a contra-argumentação antes mesmo de ouvir o argumento, soltando um imaturo “tu não mandas em mim”.

 

Suspirei, engolindo a realidade que conheço bem. Essa de que não, não mando. Nem nele nem em todos os seus trabalhos de artesanato, onde o nó é dado no final de cada ponto, sempre com uma mestria digna dos melhores criadores. Mas não lho disse. Ainda trazia, suponho, aquela esperança irrazoável, despropositada e pouco sã de que, com a intenção certa e uma dose coerente de argumentos, um dia ele pudesse ouvir-me.

 

Não podes preocupar-te tanto com os problemas dos outros. Disse-lhe. Nem com os do mundo. Nem dar-te tanto. Nem amar tanto. Tudo isso é um caminho para a dor.

 

Assobiou para o lado. Trazia ventos frios do Norte com essa respiração que era trejeito de linguagem antiga, com uma etimologia muito própria. E repetiu, sem precisar de mais: “tu não mandas em mim”.

 

Tentei explicar-lhe. Sabes quando a televisão está ligada? Aquela pontada que sentes, feito corte na carne, ao ver ditaduras nascer de normas e pessoas cegas que a aceitam? Aquele remoer que sai das vozes de quem se diz sem teto, sem comida, sem futuro; que ecoa e faz danos nas tuas paredes arteriais? Aquela sensação de sufoco, que dá ferroadas sempre que assistes à morte prematura de alguém que não aguentou mais? Não é a televisão que te fere mas a tua teimosia. Não podes preocupar-te tanto com os problemas do mundo.

 

Respondeu-me. “Tu não mandas em mim”.

 

E, insistente, continuei. Ou aquela sensação de responsabilidade, que te acelera e mói, sempre que alguém que conheces te telefona, pedindo o teu conselho ou a tua ajuda. Já pensaste que poderias ser mais calmo, mais leve, se não obrigasses as mãos a clicar no verde incandescente, se não obrigasses as pernas a caminhar na direção dos problemas, se não fizesses com que toda a tristeza se embebesse nos poros da pele? Não digo que não te preocupes... Mas preocupa-te menos!

 

Respondeu-me. “Tu não mandas em mim”.

 

E, ignorando-o, continuei. Mesmo o amor. Vê bem: estás fora de época. Já ninguém é assim. As estações mudam e as pessoas também. Achas sensato o desenvolvimento desses sentimentos perpétuos em tempos de efemeridade? As pessoas chegam e vão. E tu ficas, com uma dose igual de amor por elas, estejam ou não. Sofres a saudade e a solidão com a mesma dose de desejo pelo bem-estar dos outros. E ainda te dizes feliz por essa felicidade que não te pertence. Também tens direito a ela, sabias? Podias amar menos, dar-te menos, aceitar menos e ser feliz com isso. A tua felicidade também importa. Ama menos.

 

Pensei que me respondesse. Assim. “Tu não mandas em mim”. Mas irritou-se. Levantou-se do degrau onde o sentara. Com uma força desumana, pôs as mãos nos meus ombros e obrigou-me a tomar-lhe o lugar, naquele pedaço de escada fria e marmórea, ladeado de paredes lisas e geladas.

 

Minha menina – começou – sentir dói. Dói como estar vivo deve doer. Porque o mundo é amargo e as pessoas sofrem e o amor, às vezes, magoa. Mas é a inquietude que te faz estender a mão aos outros. E é a mágoa que te faz querer plantar sorrisos. E é o amor que te leva até aos locais que são negados aos pobres de espírito. Por isso, lamento, vou sentir. Vou sentir tão plenamente que, em alguns dias, vais querer morrer. Tão plenamente que, em alguns dias, vais querer ser eterna. Tão plenamente como me apetecer.

 

Olhou-me ali. Derrotada, sentada no degrau, e olhou para mim, com um ar insolente. Antes de retornar ao meu peito ergueu-me o rosto, olhou-me nos olhos e acrescentou: “Além disso, tu não mandas em mim”.


Marina Ferraz



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