terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Pessimismo

 


“Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo.”

- José Saramago

 


Não creio que a felicidade volte.

 

Esta foi a frase que ela disse, fechando a porta e apagando as luzes. Colando páginas antigas de jornal nas janelas e arrastando-se até ao sofá, onde se escondeu sob a manta velha.

 

Tinha as mãos geladas e o gato miava. Ouvia-se o som do pensamento errante, quando pressionava as tábuas soltas do soalho humedecido. Os espelhos refletiam sonhos que nunca se tinham concretizado. E a figura itinerante da mágoa insistia em sentar-se na poltrona mais cómoda, olhando para ela, com desprazer impresso nas rugas ocasionais que a eternidade causara.

 

Lá fora, prostituíam a palavra amor e faziam autos de fé à liberdade. Os olhos eram cúmplices da língua que não tinha pudor na denúncia. O ódio patrulhava a cidade, levando mais depressa a mão às armas do que ao sentido de empatia.

 

Pediam a toda a gente que pagasse com cartão, para evitar que o dinheiro sujo contaminasse as mãos cansadas dos escravos. Mas o único cartão que a maioria das pessoas tinha era aquele que puxava para os becos escuros, para encontrar abrigo e dormir mais quente.

 

Ela tinha sorte porque tinha um teto. O teto protegia-a de inimigos visíveis e invisíveis, como um deus sem religião, que só cedia quando a chuva caía durante mais de meia hora seguida.

 

Não creio que a felicidade volte.

 

Repetiu, com a voz abafada pela manta, que tentava colmatar a temperatura constantemente gélida, que vinha da rua e da casa e da alma, encontrando-se toda na pele que, insistentemente, não aquecia.

 

A figura atroz da mágoa que se sentava na poltrona, agitou-se levemente e ofereceu-lhe concordância em silêncio. O gato miava.

 

Lá fora, o som das sirenes ajudava a ocultar o som que o estômago vazio das pessoas fazia. Já não se alimentavam de comida e de esperança há muito tempo. Quase desde o tempo em que ainda sobrava, nelas, esperança de que a carta fundamental fosse fundamentalmente resistente a qualquer vírus de tirania.

 

O som das sirenes também lhe escondia os sons orgânicos. Mas lembrava-lhe a morte dos pais. Dois tiros certeiros, por saírem na hora errada, do dia errado, por uma necessidade qualquer.

 

Já lhe tinham cortado a eletricidade há alguns meses, por falta de pagamento. Mas, para abafar aquele som terrível, de sirene e desgosto a sinalizar o deserto das ruas, ligou o rádio a pilhas para buscar conforto.

 

Claro: a música era coisa rara. A cultura fora a primeira a cair quando todas as estruturas tinham abanado. Os artistas tinham sido os primeiros a dar o peito às balas e a pintar as ruas de vermelho. E ela tinha saudades da música e do teatro e da poesia.

 

Estática interrompia a voz do jornalista que anunciava uma nova vaga de doenças e terminava com mensagens de esperança sobre um amanhã melhor. A mágoa levantou-se da poltrona, rindo e saiu, deixando a porta aberta.

 

As sirenes estavam mais próximas. Entraram com o vento. E ela deixou que a porta assim ficasse, escancarada, deixando entrar sons e sonhos e saudade de tempos que a memória já apagava.

 

O frio enregelante arrepiava-a. O gato que miava fugiu. Ela destapou-se. E repetiu:

 

Não creio que a felicidade volte.


Marina Ferraz



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