terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Rotina

 

 Fotografia de Rui Barroso


O despertador toca. Ritmadamente. Arrancando-nos do sonho pesado e do sono leve, onde continuamos a contemplar, com a mesma desatenção, o impossível. Na ânsia de desligá-lo, há o rebolar sobre o próprio corpo, o esquecer de que o travão humano e cálido que povoava a cama é, hoje, apenas uma botija de água quente (agora morna), a separar-nos do precipício no fim do colchão. Há a queda. Nada de espalhafatoso. O pé chega antes das costas, sustenta o peso. Mas o chão, húmido e frio, como o resto da casa, lembra-nos de que a hora de levantar é essencial para que se pague a conta da luz, já astronómica, mesmo sem desumificadores e sistemas de aquecimento.

 

Quem nos manda ficar em casa talvez não o saiba, nas suas casas com ar condicionado e soalho térmico radiante, salamandrazinha de pellets e lareira com recuperador. Mas, para a maioria dos seres humanos, as casas são mesmo assim. Calor não é conforto a que todos tenham acesso.

 

Da lavagem do rosto à higiene matinal, com a gata a pedir atenção e um sol envergonhado a espreitar pela janela com o cuidado de não entrar, por temer que, se entrar, não possa sair mais; e até ao primeiro café do dia: luxo imprescindível no começo destes tempos sem rua.

 

A rotina faz-se no trabalho e na arrumação sucessiva do que está desarrumado e do que pode ser reorganizado. E, depois, faz-se no acumular de novos trabalhos e no deixar que tudo se desalinhe novamente. É preciso que haja algo para fazer. Se não houver, corremos o risco de que o corpo parado seja invadido pelo frio que o rodeia. E, como toda a gente sabe, quando o corpo enregela fica só o pensamento. Quente e ativo, o pensamento leva-nos com facilidade a lugares de tristeza e revolta.

 

De repente, no sedentarismo de um sofá, somos engolidos pelos sonhos que não cumprimos, pelas más decisões que tomámos, pelas preocupações que acumulam sobre o lugar para onde as coisas caminham nestas ruas desertas de gente e de sentido. Tentamos distrair-nos. Contamos os carneiros nas redes sociais. Um, dois, três. O frio deles deve ser melhor do que o nosso. Pensamos. Pensamos mas já nem dizemos. Há uma mudez inerente ao desassossego. Adianta de pouco ter vontade de falar quando se está só.

 

Salta, das notificações das notícias, a ideia de que mudaram as restrições e que devemos cumpri-las para nos protegermos. O pensamento continua a fazer jornadas de 24 horas por dia e 7 dias por semana. Serve sinapses a postigo e traz sempre conclusões no pires, de oferta. Não tem cafeína mas oferece insónias gratuitas que nos obrigam a colocar novamente o despertador para que consigamos sair da cama no dia seguinte, para viver mais um dia frio. Esse pensamento não é contra estar em casa – onde, aliás, sempre gostou de estar – nem tem como intuito pôr o corpo que povoa ou os demais em risco. Mas é um pensamento tão livre, que permite excursões alargadas a todos os monumentos das arestas e defeitos e falhas tectónicas de nós, da nossa casa, da nossa sociedade, do nosso planeta.

 

O problema não é a casa. O problema nunca foi a casa. O problema é que, em casa, é mais difícil fugir da sala de tortura que todos temos dentro de nós.

 

O despertador toca.

 

Desligo o despertador.

 

Tiro um café.

 

Estou cansada. Doem-me as costas. Tenho frio. É só de mim ou este Inverno está mesmo muito frio?!

 

Enquanto bebo o café, penso que gostaria de aproveitar o sol num jardim qualquer. Salta das notificações das notícias que eu sou a causa de todos os males do mundo.


Marina Ferraz



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