Quatro horas e seis minutos. É este o tempo mínimo estimado pelo GPS para ir de Coimbra ao Algarve. Isto se considerarmos que o destino é Faro. Isto se considerarmos o caminho mais direto. Isto se não houver paragens. Isto em 2024.
Mas eu não nasci em 2024. Eu nasci em 1989. Fui criança nos anos 90. Então, num carro, a ida de Coimbra ao Algarve era interminável. Durava, em síntese, o tempo do poema. Esse. “A história da grande cavalgada”.
Era com um meio sorriso e depois de nos ter mandado pôr o cinto. Depois de ter lançado um quase impercetível olhar ao espelho retrovisor, para ver como estava a confusão do banco traseiro. Depois de ligar o carro e arrancar. Era por entre o ar meio amuado da minha irmã e as brincadeiras meio tolas do meu irmão, que ele lançava a pergunta: Querem ouvir o poema d’”A grande cavalgada”?
Ouvia-se o grito ao meu lado direito e ao meu lado esquerdo. Retumbante “não”. Ouvia-se o suspiro extenso da minha mãe, no lugar do pendura: “oh, por favor, outra vez não”. E eu, ali encaixada no meio de dois adolescentes, dizendo um “sim” inocente, que garantiria uma viagem inteira ao som de “catapum catapum catapum catapum [som de cavalo a relinchar]” em loop. De Coimbra ao Algarve.
Um salto da estrada para calçada, sempre que se atravessa. Um poema para cada ocasião. Uma piada desconexa para cada momento sério. Um “não” no começo de cada frase, incluindo aquelas nas quais o conteúdo diz “sim”. Um olhar por cima da haste, quando se usa óculos, sempre que se quer ver algo com maior pormenor. A capacidade de evasão completa no meio de contextos sociais, numa espécie de surdez da mente que tem mais o que fazer do que aturar os outros. A semi-obsessão – talvez sem “semi” – quando há um desafio qualquer de algo que queremos fazer. O embrenhamento nas tarefas. As mãos pequenas, com dedos grossos e curtos. E a culinária. E as histórias contadas e repetidas e contadas outra vez. E a pintura. E a maneira absolutamente incompreensível como poderíamos declamar “catapum catapum catapum catapum [som de cavalo a relinchar]” durante 450 quilómetros de estrada, encontrando algum tipo de prazer mórbido na irritação dos outros. Eu tenho muito em comum com o declamador das aventuras equinas.
São 200 quilómetros possíveis de fazer em pouco mais de duas horas, num carro que não tem bancos traseiros. E vidas que impedem a travessia desse mar de alcatrão tantas vezes quantas gostaríamos. São dias que passam sem ouvir a voz que dizia “catapum catapum catapum catapum [som de cavalo a relinchar]”. São regressos que se acomodam, entre abraços até ao osso e resmunguice nas horas das refeições. É o tempo a ser o tempo, roubando tempo, como se ele não fizesse falta. E são dias em que a recordação pesa porque a presença seria mais importante do que a memória. Porque sabemos que a vida é frágil. Porque tememos que fique apenas memória onde houve presença.
Hoje, é Dia do Pai. E poderia escrever o poema da grande cavalgada. Preenchendo o som do trote e do galope com a história do cavaleiro. O cavaleiro que ia e voltava para África. Que voltava trazendo um presente e chocolates belgas. Que foi rede de segurança nas más decisões, para que não se transformassem em mau futuro. Sobre o poeta. Sobre o pintor. Sobre o pescador. Sobre o homem engenhoso e hábil. Sobre o cavaleiro que conduzia, declamando poemas equestres que me faziam rir durante 5 minutos e arrepender durante quase 5 horas.
Hoje, não posso fazer a jornada que me leva ao cavaleiro. Mas guardo, do poema repetitivo, a voz que sorria. Foi Proust quem o disse: “A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos”. Gosto dos olhos com os quais agora vejo essas viagens. Descubro muitos universos de paciência nessa brincadeira que nos tirava a paciência. Descubro muita dedicação nessa forma de implicação jocosa.
E, admito, descubro uma forma perfeita de poder justificar-me com genética sempre que me acusam de ser repetitiva e algo irritante…
Mas o ponto não é esse! O ponto é que houve um cavaleiro. E o GPS diz que o tempo mínimo estimado para ir de Coimbra ao Algarve é de quatro horas e seis minutos. Hoje. Nos anos 90 não. Nos anos 90 durava o tempo do poema. Esse. “A história da grande cavalgada”.
E… shhhh… pode não parecer, mas era um poema de amor.
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