Tu não fazes ideia.
Não fazes ideia de como é. Caminhares, ferida, por entre destroços, a levantar pedaços de concreto, no concreto da mágoa. Teres lágrimas secas a correr no rosto e sede. Encontrares o teu filho desfeito. Veres-lhe as entranhas destacadas. Viveres três mortes numa só, que nunca um filho morre sem que uma mãe morra e sem que a esperança morra também. Implorares a um qualquer Deus, que não importam panteões nesses momentos. Receberes, em resposta, o som de outra explosão. E seguires, porque os pés te arrastam, à espera de seres o próximo cadáver, para que a vida não doa tanto.
Tu não fazes ideia.
Não fazes ideia de como é teres a aliança do casamento a apertar a garganta. As mãos de alguém que te jurou amor. Que comprova o amor em marcas, hematomas no mapa do teu corpo. Acordares com os movimentos possessivos dele, sobre ti. Não te moveres por medo. Ouvires as frases mais duras, as que os filmes censuram e calares. Teres queimaduras e costelas partidas. Sorrires na rua e dizeres que caíste. Que desastrada!
Tu não fazes ideia.
Não fazes ideia de como é estares grávida. Fugires da guerra e seres apanhada na fronteira. Teres o corpo rasgado por soldados cruéis. Armas enfiadas em ti, disparadas dentro de ti, ceifando duas vidas simultâneas no som do riso.
Tu não fazes ideia.
Não fazes ideia de como é seres vendida aos 8 anos. Ouvires que o teu nascimento foi punição. Seres vendida, com as tuas irmãs, para que os teus pais e irmãos possam viver. Dares por ti num quarto minúsculo, com grades nas janelas. Veres entrar homens pela porta, para que pagues a dívida da tua estadia e todo o dinheiro investido em ti. Pagares essa dívida toda a vida, até ao gesto de violência que ponha fim à tortura.
Tu não fazes ideia.
Não fazes ideia de como é seres criança e levarem-te para um espaço ritual, cortarem o teu clitóris a sangue frio. Sangrares e sobreviveres, se os Deuses quiserem. Mereceres, na sobrevivência destinada pelos Deuses, o casamento. Seres objeto de depósito do prazer de alguém, parideira dos frutos desse embate corpo a corpo. E só sofreres.
Tu não fazes ideia.
Não fazes ideia de como é pores as chaves entre os dedos e, mesmo assim, não teres chances contra os agressores que povoam a rua. Ires, culpada de todos os males do mundo, pelo mal iluminado do passeio, ouvindo o coração a bater no peito. Teres o encontro fortuito com um grupo embebido de si próprio. Teres as roupas rasgadas e o corpo usado até à exaustão de gentes sem nome. Arrastares-te para casa e escolheres entre o silêncio e as acusações. Puta. O que esperavas, afinal, a essa hora?
Tu não fazes ideia.
Eu também não faço.
Sou feliz porque não sei, não entendo, não consigo imaginar o que sentem essas mulheres. Que privilégio este de ser mulher ocidental, amada, protegida por um qualquer anjo invisível. Que privilégio este de nunca ter sido vítima da guerra, da mutilação, do tráfico, da violação. Que privilégio este de ter direito ao prazer, de ter direito à palavra.
Mas também sou feliz porque não faço ideia. E porque, não fazendo ideia, não sou indiferente à ideia de quem faz. E porque posso escrever este texto, destinado a quem, como eu, não faz ideia.
Então, este texto não é sobre fazer ideia do que os outros passam. É sobre a necessidade de entendimento sobre o nosso privilégio – do qual muitas vezes, por mera desatenção, também não fazemos ideia – e de saber o papel e a responsabilidade de quem tem voz.
Não faço ideia de como seja não ter voz. Aproveito a minha para falar. Não falo porque sei. Falo porque posso. E, se ninguém falar, nada mudará. Jamais.
Tu não fazes ideia.
Eu não faço ideia.
Alguém, algures, sabe exatamente o que eu quero dizer…
Não tu.
De ti, espero – com a maior honestidade – que nunca faças ideia.
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Escreve-se porque é preciso.... E é importante falarmos, de tudo.
ResponderEliminarÓptimo texto!