- Podem
chamar poeirentas às minhas esquinas e fáceis às minhas conquistas. Eles nunca
saberão, nunca sonharão o que me faz ser como sou!
A voz dele
estava repleta de agonia. O rosto dele vinha marcado das lágrimas por verter.
As mãos, velhas e enrugadas, tinham os jeitos de quem sabe que segurar uma
cerveja entre os dedos não iria sarar a alma.
- Podem
chamar o que quiserem, meu velho amigo. Podem dizer que as minhas decisões
foram erradas. Não importa. Não importa.
Não dormia
há dias. Podia dizer isso pelo arrastar das palavras, pelos silêncios mortos no
centro das frases. Podia dizer isso pelo olhar cego, desvairado e intocável,
rodeado de negro.
E
continuou, de olhos loucos e perdidos nas bolhas quase inexistentes da bebida,
num choro seco que doía.
- Ela ficou
ali, sabes? De joelhos no chão, a
implorar. Mas ela não vê. Ela não sabe. Ela não pode saber. E, no topo das
escadas, o choro. Aquele choro de inocência. Sem palavra. Sem mais do que um
olhar a questionar. E eu saí. Eu saí. Eu saí como se o choro delas não
importasse.
Deu um
murro na mesa. A madeira gasta rangeu e ele cerrou os punhos. As veias,
salientes e escuras surgiram, como se as palavras não bastassem.
- Elas
ficaram ali, como se eu estivesse lá antes. Como se eu não tivesse posto o
trabalho em primeiro lugar. Como se eu não tivesse perdido aniversários,
Natais, primeiros passos e palavras. Elas choraram como se, antes de partir, eu
tivesse estado lá.
A mágoa na
voz adensou, à medida que o olhar escurecia, mais e mais, numa falsa tentativa
de desapego.
- Nem uma
foto, acreditas? Lá estão elas, as duas, sorrindo. Mas eu não. Onde estava o
pai? Onde estava o marido? E elas choraram como se eu tivesse sido perfeito.
Imploraram como se a minha ausência pudesse aumentar, como se a minha ausência
ainda pudesse feri-las. Eles não sabem. Eles nunca sonharão o que me faz ser
como sou.
Olhou para
mim, finalmente, afastando o copo da cerveja com as pontas dos dedos encardidos
pelo tabaco.
- Eu saí
porque nunca estive. Sou um lugar vazio à mesa porque nunca dei graças. Sou o
fantasma da fotografia porque nunca cheguei a tempo. Sou a pessoa mais infeliz
do mundo porque virei costas e parti. E agora? Agora ele está lá. A chamar
poeirentas às minhas esquinas e fáceis às minhas conquistas. A chamar erradas às
minhas escolhas. A beijar a minha mulher. A embalar a minha filha. E eu estou
aqui. Num bar. A beber até cair e a fumar até mal poder respirar. E não vou
voltar. Porque elas estão lá, com ele, a sorrir, a tirar fotografias a três, a
comer à mesa juntamente com ele. E estão a sorrir. Estão a sorrir porque eu saí
para dar espaço ao sorriso. E, acredita em mim, foi a única coisa decente que
algum dia eu fiz por elas.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Lindo como sempre nos habituou <3
ResponderEliminarFiquei muito intrigada com a mudança no género de texto e na história por detrás dele. Mostra que tens talento em mais do que um campo. ;)
ResponderEliminarliindooo
ResponderEliminarLindo amiga Marina, que você tenha muita luz na tua vida,muita paz...e muita felicidades <3
ResponderEliminarLindo amiga Marina! desejo a você muita luz..muita paz..muita felicidades!! Bjs <3
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