Aviso: O texto que se segue contém linguagem forte que pode
ser considerada imprópria e/ou obscena.
Ela tinha feito do corpo um instrumento de trabalho.
Aprendera a arte do prazer. Não de uma forma subtil e romântica. Não com
floreados e delicadezas maiores que o tempo. Não! Sem eufemismos. Ela aprendera
que podia viver apenas usando o corpo nu, dando-o, vendendo-o. Aprendera que
isso lhe pagava as contas e os vícios. Que lhe saciava as necessidades básicas
e os caprichos. Ela tinha feito do corpo um instrumento de trabalho. E sabia o
nome que davam a quem, como ela, batia as esquinas dos bairros. Não se
importava.
Há uns tempos, tinha ouvido da boca de uma mulher igual a
si: "é porque a vida a isto me obriga". Revirara os olhos e erguera o
dedo do meio, enquanto virava costas e se afastava das demonstrações de
auto-comiseração. A vida não obrigava ninguém a fazer coisa nenhuma. Muito menos
abria uma porta com a indicação "fode ou fode-te". Não era isso que
acontecia. As pessoas tinham uma escolha. Faziam a escolha. Tudo certo. Já era
tempo de deixar as justificações hediondas sobre como a vida má e o mundo cruel
tinham sido estrada para a degradação. "Se todas as pessoas que têm vidas
tristes se prostituíssem, estávamos desempregadas", costumava atirar, por
entre as conversas. Claro que ninguém gostava de ouvir essas teorias. As
pessoas dizem que o livre arbítrio é a melhor coisa dos seres humanos. Mas não
naquele meio. Era muito mais fácil achar que se era puta por falta de opção do
que admitir que se escolhera sê-lo.
Ela não tinha paciência para limpeza de discurso e
justificações vazias. Nem com colegas, nem com clientes. Se calhava um
perguntar-lhe, como tantas vezes acontecia, o que a tinha levado àquele
caminho, ela respondia sempre o mesmo: "Querido, estás aqui para falar ou
para foder?". Eles estavam lá para foder. Ela também. Era uma mera troca
de bens de consumo, baseada no corpo. O corpo era o seu instrumento de
trabalho. E sim! Dava trabalho! Depilação, ginásio, dieta. Uma constante preocupação.
Ser puta era como ser modelo mas com ainda menos roupa e sem edição de imagem.
Não se queixava. Fora escolha sua. Até ao limiar do que
loucamente podia ser anunciado. Fora escolha sua. Poderiam, um dia, inscrever
isso mesmo na sua lápide: fora escolha sua. Não guardava, sobre a escolha,
arrependimentos nem mágoas. Todas as pessoas escolhiam alguma coisa. Ela
escolhera duas: a prostituição e a honestidade. E eram duas escolhas válidas,
embora parecessem anular-se.
Ela tinha feito do corpo um instrumento de trabalho. Não
pensava nele como parte da alma. Não pensava nele como recipiente da alma. Não
pensava que tivesse alma. Mas acreditava que, se a tivesse, a sua pureza não
seria medida pelo número de corpos que tocavam o seu nem pelo número de leitos
onde se estendia e se dedicava ao prazer. Se houvesse alma, ela devia
certamente ser medida pelo resto.
As pessoas confundiam, com frequência, o verbo ser e o
fazer. Havia uma diferença grande entre ser bom e fazer o bem, tal como havia
diferença entre ser puta e viver da prostituição. Mas ela sabia que discutir
normas e conceitos sociais era equivalente a tentar prender as ondas na costa.
Completamente inútil e estupidamente ilógico. Não as discutindo, optava por
pensar nelas. E tinha muitas perguntas onde toda a gente parecia ter respostas.
O que é que tornava uma escolha errada? Quando é que a sociedade tinha
desprezado os próprios pilares da vida? Onde se guardava a lógica dos tempos
que tinham determinado o que era moralmente aceitável e o que era incorrecto?
A noite passava nesses pensamentos. Passava neles, de
corrida, até rua se transformar em motéis. E motéis se transformarem em rua. E
a manhã vir romper o horizonte para lhe dizer "bom dia".
Na manhã que começava a nascer, iniciava-se o caminho
apático das gentes na direcção dos trabalhos. Taciturnas e descontentes,
passavam de olhos no chão. Iam sem vontade e sem outro intento que não o da
obrigação. Notou que ninguém sorria. "Será que as pessoas têm medo de
sorrir?", perguntou-se, enquanto largava o canto e começava o caminho para
casa.
Tinha os pés cansados da noite. Mas sorria. E, nas ruas onde passou, entre passeios atolados de pessoas, pessoas atoladas de problemas, problemas atolados de preconceito, compreendeu que era a única a sorrir. "Será que as pessoas têm medo de sorrir?", perguntou-se novamente. Mas, depois, ocorreu-lhe que talvez não fosse medo. Talvez as pessoas vendessem os sorrisos. Talvez fosse esse o preço da sobrevivência. E teve pena delas. Cada uma daquelas pessoas, a vender-se assim, despindo-se de felicidade a troco de dinheiro, de estatuto, de reconhecimento. Sabia quem era. Sabia o que fazia. Tinha feito do corpo um instrumento de trabalho. Mas teve verdadeiramente pena das pessoas que passavam sem sorrir. Teve pena da forma como vendiam os sorrisos a troco de migalhas. Ela prostituía-se... mas não tanto e não por tão pouco.
Tinha os pés cansados da noite. Mas sorria. E, nas ruas onde passou, entre passeios atolados de pessoas, pessoas atoladas de problemas, problemas atolados de preconceito, compreendeu que era a única a sorrir. "Será que as pessoas têm medo de sorrir?", perguntou-se novamente. Mas, depois, ocorreu-lhe que talvez não fosse medo. Talvez as pessoas vendessem os sorrisos. Talvez fosse esse o preço da sobrevivência. E teve pena delas. Cada uma daquelas pessoas, a vender-se assim, despindo-se de felicidade a troco de dinheiro, de estatuto, de reconhecimento. Sabia quem era. Sabia o que fazia. Tinha feito do corpo um instrumento de trabalho. Mas teve verdadeiramente pena das pessoas que passavam sem sorrir. Teve pena da forma como vendiam os sorrisos a troco de migalhas. Ela prostituía-se... mas não tanto e não por tão pouco.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Belíssimo texto. havia escrito sobre o tema mês passado.
ResponderEliminarAMANTE AD HOC
Adota para si as recusas alheias
Toma com amor ocultados prantos.
Leito fogoso de emaranhadas teias
Reduto vivo de prazerosos encantos.
Amiúde, geme, põe corpos incendiados
Não só homens, mas cansados santos
Sem pecados, remorsos vigiados
Cobre todos de amor em seus mantos.
Maltratam-na, rotulando-a: - sua puta!
Sem saber quantos e quantos casamentos
Salvou com seu amor essa moça astuta
Quanta insatisfação supriu sua conduta
Quando seu colo agasalha mil lamentos
E só – após – chora a moça substituta...