Nasci com o coração vazio. Preenchê-lo foi a segunda coisa
que fiz. Primeiro chorei. Depois enchi-o de alegria. A alegria fez dele um
coração mais completo.
Com o coração recheado de alegria, provei os primeiros
sabores e senti os primeiros aromas. Apreciei as primeiras texturas. Derreti-me
nos primeiros abraços. Com o coração inundado por essa felicidade, dei os
primeiros passos. Disse as primeiras palavras. Sofri as primeiras quedas. Com o
coração cheio de contentamento, senti o embate dos primeiros sentidos. O
desgaste dos primeiros sentimentos. Cultivei as primeiras ilusões. As ilusões
trouxeram consigo realidades além da minha. Subitamente, o mundo em meu redor
não bastava. A alegria dissipou no centro do horizonte onírico dos meus
desejos. O meu coração ficou despojado de tudo.
Tinha o coração vazio pela segunda vez. Nunca gostei do
vazio. Preenchê-lo foi a primeira coisa que fiz. Enchi-o de sonhos. Sonhos para
hoje. Sonhos para amanhã. Sonhos para um futuro incerto que há-de vir. Os
sonhos fizeram dele um coração mais completo.
Com o coração recheado de sonhos, fiz as primeiras
experiências. Escrevi as primeiras linhas. Apaixonei-me pela primeira vez. Esse
primeiro amor não era pessoa mas palavra. Apaixonei-me pela prosa. Pela poesia.
Pelo que podia ser criado no horizonte infinito de uma folha em branco. Com o
coração inundado de sonhos, criei as primeiras expetativas. E vi-as defraudadas
pela primeira vez. Pela segunda. Pela terceira. Vi os meus sonhos destruídos
nas mãos da vida. Nas mãos das pessoas. Nas mãos do tempo, esse traidor sem
rosto. Cultivei as primeiras mágoas. Subitamente, os sonhos não bastavam.
Lentamente, deterioraram-se em fragmentos. Os seus fragmentos esvoaçaram,
fizeram-se poeira. O meu coração ficou despojado de tudo.
Tinha o coração vazio pela terceira vez. Nunca gostei do
vazio. Preenchê-lo foi a primeira coisa que fiz. Enchi-o de amor. Não sabia
muito bem que podia amar-me. Achava que não. Como podia eu ser merecedora de
amor, se tinha já desgastado a alegria e destruído o sonho? Então, no cultivo
de um amor ao próprio amor, amei a ideia da alegria que tinha perdido e amei as
pessoas que me tinham arrancado os sonhos.
Com o coração recheado de amor, dei-me pela primeira vez. Selei
os primeiros beijos. Desatei os primeiros medos. Entrelacei os dedos pela
primeira vez. Com o coração envolto na plenitude das paixões, entreguei-me ao
prazer. Destruí as primeiras muralhas. Acreditei que o sonho e a felicidade
eram um só e se cruzavam na realidade do agora. Criei esperanças maiores do que
eu. Senti-as pesar nos ombros e no peito. Vi-as quebrar com amostras de
desilusão. Vi o coração esvaziar-se de novo, mais rápido, mais brusco,
envolvendo-se nas nuances de desespero.
Tinha o coração vazio pela quarta vez. Nunca gostei do vazio.
Mas entendi, finalmente, que talvez devesse gostar. O vazio tem sombras. Se tem
sombras é porque existe luz. Compreendi que a sombra da alegria ainda é
alegria. Que a sombra do sonho ainda é sonho. Que a sombra do amor ainda é
amor. Preencher o coração não foi a primeira coisa que fiz. Primeiro, aprendi a
amar as sombras. Depois, aprendi a amar a luz que as cultiva. Preencher o
coração, foi a última coisa que fiz. Preenchi o coração com as sombras do
vazio. Elas alojaram-se com naturalidade. Preencheram até os recantos que nunca
tinham conhecido o toque do sentir. Prenderam-se às suas paredes com raízes de
treva e caos. Hoje o coração está cheio. Já não há espaço para mais ninguém. Já
não há espaço para mais nada. Fecharam-se as janelas. Nunca mais terei o
coração vazio.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
AMEI MUIITO LINDO E FLUTUEI EM BELAS EXPREÇOES ATE FALT-ME PALAVRAS O ME EXPRESAR
ResponderEliminarAbsolutamente maravilhoso!!
ResponderEliminarParabéns!!
Beijinho
Teresa Carvalho
adorei o texto. ef
ResponderEliminarEsse texto me emocionou bastante,primeiro porque depois de quatro vazios significativos talvez eu não tenha conseguido ainda aprender a amar as sombras,mas trabalho nisso pensando que é o melhor a se fazer.
ResponderEliminarPreencher o coração não nos torna mais felizes se esse preenchimento é passageiro e depois de aprender a amar as sombras talvez eu não precise mais preencher meu coração.
Incrível mesmo,parabéns querida :D
Beijinhos Jenny ^.^