Olhares comprometidos. Tantos. Olhando em redor. Sem ver
mais do que embaraço. Vivendo o vexame de tudo o que não regressa.
Comprometidos. Mas sem compromisso. Porque olhos que não vêem não podem dar-se
nas ruas, sem que haja desconforto. E o desconforto é abismo. Quedam-se.
Olhares. No chão. Neles permanecem, vivos mas a fingir que estão mortos. Porque
sabem. Sabem que estão comprometidos.
Os pés são companheiros eternos desses olhos. E, não podendo
simplesmente ir, vão indo. Com a atenção desconfortável de dois olhos que já
não encontram outro horizonte que não o dos sapatos, à medida que estes vão
pisando pedras e ervas e resíduos orgânicos nos passeios sujos da cidade.
Tão intrincados estão, os olhos e os pés, neste jogo de amor
desalentado e fuga coerciva, que há quem julgue que se namoram. Não é que o
façam. Nunca a sua relação passou disso mesmo, do encontro desamparado entre os
dois, com metro e meio de distância, como mandam os bons costumes. Mas
permanecem na luta inglória pelo desapego e são ambos conhecedores dos saberes
da ignorância. Os olhos ignoram a vida. Os pés ignoram o chão. Comprometidos.
Mas não uns com os outros. Ignoram. Porque saber dói.
E os olhos dizem que dói. Principalmente os que,
comprometidos, se quedam nos pés. Sabendo, de uma forma algo implícita, que
abarcar o mundo traz um sabor acre para o centro da doçura da insipiência. São
olhos desalentados, também. Mas, principalmente, são olhos comprometidos e
iletrados. Olhos que, podendo escolher qualquer coisa, escolhem ainda não ver.
Nessa cegueira consciente que acaba em metamorfose, os olhos
deixam de ser olhos e passam a ser ecrã. Passando, de forma repetitiva e
acrítica, as mesmas passagens ilusórias do que a vida deveria ser. Porque, se o
fosse, o sossego permitira olhar em frente e ir, com desapego e indiferença,
por entre ruas de tijolo dourado, onde tudo luz e resplandece.
Os olhares comprometidos sonham. Com uma bolha de utopia.
Sabem que é utopia. Fingem que não sabem nada. E vão, de pedra da calçada em
pedra da calçada, atrás de si mesmos, para se obrigarem a cegar. E cegam. Criam
barreiras e muralhas. Lentes opacas. Feitas de chão. Feita de pés.
Não há compromisso no olhar comprometido desses olhos. São
só cegueira. Voluntária. E têm, por isso mesmo, o único intuito de não ter
sonhos acima do chão onde pousam, para ver os pés que caminham, metodicamente e só porque sim.
Olhares comprometidos. Tantos. Se olham os meus, de relance,
logo sentem que queimam. Porque os meus, ainda que não possam sarar o mundo,
sabem olhar para ele. E têm lágrimas. Lágrimas que são vidro onde se reflete
uma imagem mais ampla sobre o que se transfigura nas raízes podres do tempo.
Passam. Pés no chão e olhos nos pés. Olhares comprometidos.
Feitos do mesmo resíduo orgânico que se pisa nas ruas sujas da cidade.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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