Há uma presença na minha casa. Dá passos sofisticados e
calmos. E passa despercebida a quem não sabe. Depressa se faz sombra num canto
e desaparece. Depressa se deixa ficar adormecida num espaço qualquer ou se
silencia, absorta, fixando o tudo e o nada, fora da janela. E tem sempre uma
postura feliz. Seja na contemplação ou na brincadeira. Não fala e não escreve.
Na maioria dos dias, simplesmente está e existe. Nesta simplicidade, ensinou-me
muito sobre a vida.
Costumo sair cedo. Mais por hábito do que por obrigação.
Deixo para trás uma taça cheia de água e outra com meia dose de comida.
Despeço-me em voz alta, como se ela respondesse. E ela espreita-me, geralmente
do quarto, girando a cabeça para o corredor e soltando um miado. Imagino que me
diz “não vás”. E penso sempre que, no regresso, amuada e triste, por um
qualquer tipo de despeito, me vai ignorar. Mas volto para ela. E ela espera-me
à porta. Encosta-se às minhas pernas. E corre à minha frente, para onde quer
que eu vá. Celebra a minha presença, incapaz de me guardar rancor pela
ausência. E deita-se no meu colo, implora pelas minhas festas, devolve-as em
lambidelas de lixa e com cabeçadas pontuais. Ela ensinou-me sobre o apego
desinteressado. Sobre como receber alguém que se ama. Como cultivar afeto onde
poderia haver ressentimento. E faz da minha casa um lar, cada vez que volto, à
espera de encontrar paredes vazias e divisões silenciosas.
Eterna menina negra, ela não se deixa crescer. Dos
brinquedos espalhados pela casa faz companheiros de viagem, que começam a ter
nomes. E vai, desta forma, permitindo que me habitue a outros ritmos e outras
vontades além da minha. Tropeçar em mini peluches e em collants rotos que ela
não me deixou deitar fora torna-se comum na minha casa; tal como se torna
frequente que eles me sejam depositados em cima das teclas do computador, para
jogar “ao busca”. Tentei dizer-lhe que ela não é um cão. Mas ela não percebeu.
Porque não conhece o preconceito nem os estereótipos. Quer apenas brincar “ao
busca”. E, brincando com ela, eu aprendo que os rótulos são uma idiotice da
nossa cultura.
Quando a vida atormenta, cansada e despida de energia, dou
muitas vezes por mim a brindar a solidão com gotas de lágrima sobre a cama. Ou
simplesmente no olhar seco sobre as paredes e as lombadas dos livros
poeirentos. Talvez porque ouça muito mais do que fala ou porque se deixe sentir
o outro e toda a sua energia, ela sabe quando eu não estou bem. E, logo ela,
que me procura sempre por interesse próprio, seja para o carinho ou para a
brincadeira, junta-se a mim apenas para dar, sem pedir nada. Traz todas as
formas de ternura que conhece. Rodeia-me com os brinquedos dela, sem se mostrar
interessada na brincadeira. Sobe-me para o colo e encosta a cabeça à minha. Ou
simplesmente senta-se a meu lado, olhando para mim. E há mais entendimento do
que dúvida nos seus olhos. Diz-me, sem qualquer palavra, que posso chorar ou
não… mas que, de qualquer forma, não estou só. Com estas demonstrações de
amizade, ela ensina-me que cuidar de alguém é simples.
Quando calha agitar-se, corre pela casa toda como se fugisse
de assombrações, atira ao chão peças metálicas, entorna metade da água e mia em
vários tons, volumes e intensidades. E não adianta dar-lhe mais água, mais
comida, mais mimo. É um botão encravado no mio que só desliga quando ela quer.
Certa vez, miei de volta e ela desapareceu durante meia hora. Foi também uma
lição sobre como podemos ofender alguém se não conhecermos o seu idioma e não
fizermos ideia do que estamos a dizer.
No final do dia, temo-nos uma à outra. Ela olha para mim
como se tivesse sido um bom dia e faz-me sentir que o foi. Acabamos as duas
relaxadamente a olhar para o nada. O pelo dela, entre os meus dedos, faz-me
sentir que a suavidade da minha história ainda não terminou. Deitada aos meus pés,
aquecendo o frio de um verão por chegar e de um sol que se apagou, ela
mostra-me o toque da lealdade e do amor. E aprendo, com ela, que a felicidade
se escolhe.
Do preto do seu pelo ao brilho da alma que eu sei que tem,
não existe nada nela que me seja azar. Sinto, quando me espera à porta, que
tenho uma razão para voltar para casa. E sinto, quando volto para casa, que a
posso transformar num lar. É a minha companheira e a minha amiga. Torna-se
família a meus olhos. Torna-se parte de mim. E, enquanto escrevo este texto,
deitada no arranhador junto à janela, ela observa as árvores que se agitam. Não
se importa com o vento frio deste Junho. Boceja e revira-se, olhando para mim.
Faz um trejeito de miado que se perde a meio, num segundo bocejo, que termina com
a língua e um dentinho de fora. Fecha os olhos com leveza. Tudo nela é
tranquilidade. Ela ensina-me. Eu aceito aprender. Ser feliz é isto.
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