Sinto-me miserável! Malditos planetas retrógrados!
Não percebo muito de astrologia. Mas isto eu sei! Na
astrologia existe um fenómeno. Planetas retrógrados. Fala-se deles quando, olhando o céu,
observamos que esses planetas fazem um movimento contrário ao expectável,
andando para trás. Calma! Eles não andam para trás. Mas a Terra move-se e faz
com que pareça assim. E, de repente, a conjuntura mais propícia à Lei de Murphy
parece abater-se sobre os humanos. Apesar de o planeta mais próximo estar a
cerca de 40 milhões de quilómetros de distância.
Bem mais perto, andar para trás não é ilusão de ótica,
mas ciclo. Caixinhas e caixinhas e mais caixinhas, onde se enfiam seres humanos
com base no género, na sexualidade, na cor da pele e na conta bancária.
Divisões que separam norte e sul. Que decidem quem vive ou morre. Que colocam a
barra do sofrimento em patamares incomparáveis, enquanto as florestas são
regadas com água do mar e chuva ácida. Para que um dia o ar escasseie e
sobreviva só quem o engarrafou... Tento explicar que o que me importa são as
pessoas. O resto são saliências, orifícios, melanina e casualidade.
Querem saber em que caixa estou. E eu quero estar fora da
caixa. Sem saberem que uniforme devem vestir-me, dão-me uma t-shirt larga com
um alvo no bolso frontal, do lado esquerdo. E mandam que volte mais tarde ao
guichê, na esperança de que alguém acerte na mouche, e eu não volte.
Vou andando. Guerra aqui e ali. Violência ali e aqui. Dor
a crescer a céu aberto e esperança a mirrar nas estufas que ninguém rega. Gente
de t-shirt vermelha, com uma pequena cratera no bolso. Furo de bala. De bazuca.
De tecnologia triste e podre. Lançada por um drone. Escavada por uma draga que
sugou até a vida da própria luz que criou a vida, quando os Deuses não tinham
sido inventados.
Atiro uma bala ao charco. O metal afunda. E eu afundo a
cabeça nos joelhos. Espero o meu tempo. Regresso. Ainda não pertenço a nenhuma
das caixas. Perguntam o que sou e sou só pessoa. Não têm esse espaço entre os espaços
destacados. Querem saber género, sexualidade, cor da pele, estrato social.
Saliências, orifícios, melanina e casualidade. Mas eu não me interesso por
isso. Não penso nisso. Ignoro-os. É difícil ouvi-los e aos seus pedidos por
entre os gritos da tirania, da guerra, da vida no segundo antes de ser morte,
quando vai de ruído escabroso a silêncio áspero.
Dizem-me que devo estar sob a influência de algum planeta
retrógrado. Sinto-me miserável! Malditos planetas retrógrados! E perguntam-me
se sei qual é... Não percebo muito de astrologia. Mas se um planeta está a
fazer-me isto, tenho quase a certeza que é a Terra.
Marina Ferraz
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