terça-feira, 17 de setembro de 2024

Incêndio

 

Imagem gerada por I.A.

Desculpem. Eu ia publicar um texto. Hoje. Porque é terça-feira. Porque escrevo. Porque me habituei à rotina de ter textos à terça-feira. Planeava publicá-lo às sete. Então escrevi-o na mente, aguardando a hora de me render às teclas do computador, para o debitar, libertando-o das amarras do pensamento e desfiando as ideias pelas linhas direitinhas do editor de texto, em Times New Roman, 11.

 

Sim. O meu texto estava escrito na minha mente. Mas tinha-o pousado sobre as ervas frescas da esperança, verdes. E as ervas verdes ficavam sobre solo rico de minério.

 

Desculpem. Eu ia publicar um texto. Hoje. Porque é terça-feira. Mas o meu texto não interessa a quem quer escavar o solo para colher opulência e abrir campas.

 

Hoje não tenho texto. Atearam o fogo. Ardeu.

 

Sobrou o fumo. A cinza. O cheiro nauseabundo da morte. Um pensamento disperso. Um cansaço imenso. Olhos alagados. E um pouco de raiva quente. Para um próximo texto.


Marina Ferraz




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terça-feira, 10 de setembro de 2024

Conjuntura planetária

 

Fotografia de pt_astrophoto


Sinto-me miserável! Malditos planetas retrógrados!

  

Não percebo muito de astrologia. Mas isto eu sei! Na astrologia existe um fenómeno. Planetas retrógrados. Fala-se deles quando, olhando o céu, observamos que esses planetas fazem um movimento contrário ao expectável, andando para trás. Calma! Eles não andam para trás. Mas a Terra move-se e faz com que pareça assim. E, de repente, a conjuntura mais propícia à Lei de Murphy parece abater-se sobre os humanos. Apesar de o planeta mais próximo estar a cerca de 40 milhões de quilómetros de distância.

 

Bem mais perto, andar para trás não é ilusão de ótica, mas ciclo. Caixinhas e caixinhas e mais caixinhas, onde se enfiam seres humanos com base no género, na sexualidade, na cor da pele e na conta bancária. Divisões que separam norte e sul. Que decidem quem vive ou morre. Que colocam a barra do sofrimento em patamares incomparáveis, enquanto as florestas são regadas com água do mar e chuva ácida. Para que um dia o ar escasseie e sobreviva só quem o engarrafou... Tento explicar que o que me importa são as pessoas. O resto são saliências, orifícios, melanina e casualidade.

 

Querem saber em que caixa estou. E eu quero estar fora da caixa. Sem saberem que uniforme devem vestir-me, dão-me uma t-shirt larga com um alvo no bolso frontal, do lado esquerdo. E mandam que volte mais tarde ao guichê, na esperança de que alguém acerte na mouche, e eu não volte.

 

Vou andando. Guerra aqui e ali. Violência ali e aqui. Dor a crescer a céu aberto e esperança a mirrar nas estufas que ninguém rega. Gente de t-shirt vermelha, com uma pequena cratera no bolso. Furo de bala. De bazuca. De tecnologia triste e podre. Lançada por um drone. Escavada por uma draga que sugou até a vida da própria luz que criou a vida, quando os Deuses não tinham sido inventados.

 

Atiro uma bala ao charco. O metal afunda. E eu afundo a cabeça nos joelhos. Espero o meu tempo. Regresso. Ainda não pertenço a nenhuma das caixas. Perguntam o que sou e sou só pessoa. Não têm esse espaço entre os espaços destacados. Querem saber género, sexualidade, cor da pele, estrato social. Saliências, orifícios, melanina e casualidade. Mas eu não me interesso por isso. Não penso nisso. Ignoro-os. É difícil ouvi-los e aos seus pedidos por entre os gritos da tirania, da guerra, da vida no segundo antes de ser morte, quando vai de ruído escabroso a silêncio áspero.

 

Dizem-me que devo estar sob a influência de algum planeta retrógrado. Sinto-me miserável! Malditos planetas retrógrados! E perguntam-me se sei qual é... Não percebo muito de astrologia. Mas se um planeta está a fazer-me isto, tenho quase a certeza que é a Terra.


Marina Ferraz




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terça-feira, 3 de setembro de 2024

A criança torturada

 

Imagem retirada da web | Pixabay

O homem agarrou a criança. O homem obrigou-a a assistir à morte da mãe e do pai, numa tortura muito lenta, que os fez arrancar os olhos e caminhar cegos até ao abismo. O homem disse à criança que precisava de aprender todas as razões pelas quais ele era o herói, o mestre, o único salvador na pátria. O homem determinou que a criança teria de respirar fumo de escape, de segunda a sexta. Obrigou a criança a trabalhar em salas húmidas, com iluminação imprópria e aguentando o calor insuportável dos dias quentes e o frio enregelante dos dias gelados. Castigou a criança. Bateu à criança. Obrigou-a a pagar pelas distrações até que não sobrasse moeda para o lanche. Obrigou-a a deixar de ser criança. Fechou-a na jaula das obrigações com outras crianças iguais a ela: que já não o eram! Mandou que procriassem de noite e se fizessem úteis durante o dia. Deixou que se vissem os ossos miúdos por debaixo da pele, fruto de fome, fadiga e desespero. Transformou as crianças em pais. Torturados lentamente. Até arrancarem os olhos e caminharem cegos para o abismo. Frente às crianças que assistiam, obrigadas...

 

Só que o homem era o Estado.

 

E a criança éramos nós.

 

Talvez com os olhos nas mãos, a caminhar para o abismo seja tarde.

 

Talvez fosse diferente se, enquanto estão no rosto, os mantivéssemos abertos.


Marina Ferraz




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