quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Esta casa

 


Há uma casa. Essa casa já não é minha. Mas há uma casa. E será sempre a casa na qual a minha avó nunca entrou.

 

Quando a comprei, lembro-me de escolher cautelosamente alguns detalhes. Sempre a pensar nela. A janela para o verde. O elevador. A luz de presença.

E lembro-me de mudar o que não se adaptava. De transformar a varanda em marquise, de comprar o sofá-cama estável. De pôr o ar condicionado. De tirar a banheira e a trocar pelo chuveiro, tão mais fácil de entrar... Cada detalhe dessa casa – que hoje já não é minha – foi pensado para lhe dar um espaço onde se sentisse bem.

 

Sobre a casa tivemos conversas. Contei com detalhe cada pormenor. Entusiasmo na minha voz. Entusiasmo no rosto dela. Entusiasmo pela casa. Essa casa que já não é minha. E na qual ela nunca entrou.

 

Nessa casa entraram os meus pais. Entraram, literalmente, centenas de artistas. Entraram amigos. Entraram amantes. Entraram alunos. Entraram esperanças. Entraram sonhos. Entraram contrariedades. Entraram desesperos. Entraram mágoas. Entraram ocasionais moscas varejeiras e egos (e eu nunca soube por onde, mas encontraram depressa a saída...). E entrou o luto. Por ela. Que nunca entrou.

 

Deixando para trás a casa, descubro que era só isso que não gostava nela. A ausência tinha presença naquelas paredes. A ausência arrastava-se pelo chão e chorava. Talvez por isso a casa fosse um pouco húmida... talvez por isso eu sentisse frio, mesmo que o aquecimento estivesse ligado no máximo.

 

 

Foi com reticência que vendi esta casa, onde a minha avó nunca entrou. Parte de mim sabia que a ausência dela ainda era alguma coisa dela. Que o vazio ainda era feito da matéria da esperança que motivara a escolha. Que a memória da falta era ainda memória...

 

Largando a casa – essa casa já não é minha e que será sempre a casa na qual a minha avó nunca entrou – e entrando na casa na qual nunca imaginei que entrasse, espantei-me. Da janela do quarto, ao pôr-do-sol, olhei longamente a serra e o seu palácio. Nuances de todas as cores dispensavam filtros ou adjetivos insuficientes.

 

Sussurrei baixinho: que bonito.

 

E juro que ela respondeu, com a voz toda sorrindo: é mesmo. Já não pensei que visse isto.

 

 

Há uma casa. Esta é, agora, a minha casa. E... como é estranho... eu juro que ela entrou comigo.


Marina Ferraz




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