terça-feira, 6 de maio de 2025

Debate à portuguesa

 

Imagem gerada por I.A.

Talvez a dimensão dos problemas de um país se veja pelas discussões mais comuns nas pessoas do seu povo.

Frequentemente, em narrativas de livros e filmes estrangeiros, nos cruzamos com as expressões de debate “a minha universidade é melhor do que a tua” ou “o meu trabalho é mais exigente do que o teu”, ou ainda “viajo mais do que tu”. O mesmo se faz com o exercício físico, o número de seguidores nas redes sociais ou o salário auferido: as pessoas olham as outras de cima, dizendo-lhes, com alguma malícia que perpetua os traços infanto-juvenis da troça, que fazem mais, que têm melhor...

Portugal tem muitos defeitos. Este, não é um deles.

 

Para que se consiga um debate sério, digno da World Universities Debating Championship é necessário que se fale de outros temas.

O primeiro – e talvez mais relevante e similar aos anteriormente mencionados – envolve sempre algures a palavra “Benfica”. Saltemos esse, porque não demonstra o que quero dizer. Quero falar dos outros debates. Aqueles que mostram bem a maravilha que é o nosso sistema de saúde, a qualidade da nossa habitação e o estado da nossa saúde mental.

 

Então vejamos:

Inicia-se a conversa. Como vai a vida? E logo salta uma resposta de três metros e muitos minutos sobre a doença não diagnosticada, que será avaliada por um profissional no dia de são nunca à tarde, porque as consultas no hospital estão a ser marcadas para daqui a dois anos. E pensar-se-ia que a resposta empática daria retorno. Só que não... em vez disso, saem mais duas doses de queixume do segundo interlocutor que, afinal, não tem uma, mas duas doenças de especialidades diferentes, e só vai ser visto no dia de são nunca à noite.

 

O mesmo acontece com as casas:

Então, casa nova?

É verdade.

E estás satisfeita?

Até estou, mas vou ter de trocar os vidros, porque entra água e há umas manchas esquisitas na parede, estou com medo que seja humidade interior.

Ah, provavelmente não é nada! Tu é que estás bem! Olha, eu tenho os tetos todos negros, entra água pelas janelas todas e até já os sofás estão a ficar podres. A canalização do prédio já rebentou na casa de uns três vizinhos, não tarda calha-me a mim! E a luz falta todas as semanas.

 

E continua para a saúde mental:

Já não te vejo há tanto tempo! Como estás?

Cá vou andando, um bocadinho cansada emocionalmente...

Mas então porquê?

Oh, provavelmente porque o trabalho anda mais escasso e as coisas lá em casa estão tremidas.

Ah! Isso não é nada! No último mês tive certamente menos trabalho do que tu, estou a divorciar-me e ele quer a guarda das miúdas. Faleceu o meu pai há dois meses e agora a semana passada foi o meu periquito.

 

Os debates em Portugal são o enaltecimento puro da degradação. Imagino o diabo com pipocas acabadas de fritar no fogo do inferno a assistir às nossas conversas como quem vê o Big Brother.

Falar do que vivemos e sentimos é quase sempre uma competição sobre quem está pior na vida. E culminam sempre com frases que indicam que outros, mesmo assim, estão mais aptos a ganhar a competição.

 

A minha casa é uma merda, mas ao menos tenho casa.

Custa, é verdade, mas vamos andando, que ao menos ainda estamos de pé.

Ainda estamos melhor do que Maria Constança. O filho dela teve um acidente na IC19, ouviste dizer?

 

E, de repente, não há um problema no mundo. Está tudo tranquilo. Estamos todos na maior...

 

Vamos beber uma imperial e comer uns caracolitos para a tasca, que hoje há jogo. E comprar uma raspadinha sem prémio, para nos queixarmos ao senhor Manuel que nunca ganhamos nada.

 

Discutiremos mais quando a outra equipa marcar.

Com a mesma tranquilidade com a qual nos queixamos da vida, sem ouvir o outro. Com a mesma apatia que nos leva ao queixume sem culpar nosso o sistema de saúde (paz à sua alma), a miséria da nossa habitação e a nossa inexistente saúde mental.

Isso. Discutiremos quando a outra equipa marcar.

Concordaremos aí, se formos da mesma equipa.

 

É outra coisa que nunca é boa em Portugal. Raios. Talvez o próximo orçamento de estado devesse dar algum dinheiro aos clubes para poderem fazer como antigamente... E comprar árbitros que sejam nossos amigos!

 

O senhor Manuel concorda, enquanto limpa dois copos. Votaríamos nele!


Marina Ferraz




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